Por Lícia Garispes
A obra makuleliana é um tanto diversa. Algumas vezes, se destaca por sua nuance crítica e didática, inspirada por jornadas no mundo externo. Recentemente, Makulelu lançou uma música chamada simplesmente “Boleto”. Em Edonguera, uma palavra dessas, obviamente portuguesa, parece se referir a algum bolo ou bola ou até uma pilha de coisas.
Como não há burocracia em Edonguera, muitos não imaginariam o verdadeiro significado desse termo. No mundo externo, onde ainda se acredita e depende do dinheiro dos governos, as pessoas devem efetuar vários pagamentos e são forçadas a entregar parte do seu ganho no mercado. No Brasil, pagam coisas com um pedaço de papel ou documento virtual que chamam de boleto.
Quando essa canção apareceu pela primeira vez, ficamos intrigados, mas Makulelu estava em retiro na floresta e ninguém conhecia ainda o significado da obra. Mas como Makulelu havia publicado a música antes do seu retiro, sabíamos que estava meditando sobre questões graves e importantes.
Eu estava com Inassim em Inavô no festival de contos quando ouvimos “Boleto” pela primeira vez. Numa tarde, depois do almoço, conversávamos e o assunto da canção e do paradeiro de Makulelu surgiu.
“Sabe, Lícia, as coisas que as pessoas passam no mundo exterior mexem muito com o Makulelu.”
“Sim, Inassim, isso é de se esperar. Eu ouvi a canção nova hoje. Percebi que essa coisa de Boleto deixou ele um pouco frustrado.”
“Pois é, não tem como, né?”
Fizemos uma pausa, que eu quebrei:
“E ele não falou nada, não explicou?”
“Nada, ele simplesmente terminou a gravação e pediu para Tassanibari lançá-la no mundo exterior o mais rápido possível. Depois usou o Narizito para mandar um sinal para o Pilé vir encontrá-lo e saiu caminhando. Só falou que faria um retiro imediatamente, andando pelos Cânions de Zainã e que, depois, seguiria na direção de Javanta, na Costa dos Alântamos para o festival do nascimento de Palula. Algumas horas depois, ouvi um chamado distante de Pilé. E vi a silhueta de Makulelu desaparecer no horizonte, rumo ao sul.”
“E você vai também para lá?”
“Sim, em umas duas semanas, quando a constelação de Palula estiver nascendo no leste, ele deve dar sinal de sua chegada na praia de Javanta para rever os amigos, compartilhar suas meditações e ouvir os casos dos peregrinos recém-chegados.”
Inassim fez uma pausa. Olhou fundo através do horizonte que se espalhava, nítido, rumo ao véu. Colocou a mão no meu ombro e disse:
“E você, Lícia, vem também pra Javanta conosco? Se você estiver por lá, poderia tomar notas e publicar alguma coisa sobre esse assunto. Além do mais, vamos ouvir muitos outros casos, que chegam frescos do mundo exterior.”
Eu concordei e começamos a nossa caminhada até Javanta na manhã seguinte, o que levaria duas semanas, seguindo pelas chácaras espalhadas pelo caminho. Seria o tempo exato até o nascimento de Palula, quando Makulelu emergiria de seu retiro.
A praia de Javanta sempre foi um lugar muito especial para o mitologia edongueriana. Foi lá que os cristais de Lerigen, que os antigos chamavam de rochas da criação, foram encontrados pela primeira vez, por Laulária Criles, antes da saída da caravana dos Xarilaus. A localização da chácara de Laulária, onde estava quando encontrou a primeira fonte dos cristais de Lerigen, não é conhecida. Há muito tempo ninguém fica por lá.
Era uma noite estrelada na floresta, que fica além da praia de Javanta, onde acampamos. De madrugada, Inassim dormia e eu me sentia conectada com a avatar dos colibris, a musa Flaunax. Eu não sabia se estava sonhando, quando ela apareceu, cercada de beija-flores, e pediu que eu a seguisse para a floresta. Cantarolava e tocava uma melodia em seu kerutuê, um instrumento de cordas celestiais.
As luzes que a envolviam me acordaram de tal maneira que eu a segui imediatamente. Ela me conduziu até um campo aberto, onde arbustos, com frutos azuis brilhavam sob a luz da lua, que acabara de nascer. Os frutos de Agriline brotam somente à luz da lua, nas florestas costeiras alimentadas pelas águas do rio Murli e devem ser consumidos frescos.
“Amanhã, o mundo dos sonhos se abrirá para você temporariamente. Aqui,” falou, apontando para as frutos, “O Agriline te ajudará a reter as memórias mais importantes do que você experienciará.”
Colheu dois frutos, me deu um deles e assim que comeu o seu, desapareceu. Continuei colhendo os frutos e comendo até saciar minha fome. Foi quando avistei Inassim, vindo rápida na minha direção. Acenou e anunciou:
“Sonhei com o papagaio Pilé esta noite! Ele me disse que Makulelu estava se renovando e que desceria pela manhã o Vale do Tacaripim.”
“Sim e o nascimento de Palula será essa noite,” lembrei.
“E tem mais. Quando levantei para ver o nascer do sol, ouvi o chamado musical de Pilé, vindo do alto da Costa dos Alântamos, cantando a melodia de Boleto.”, disse Inassim.
“Makulelu já deve estar chegando no pé do vale.”, falou
“Sim, ele deve seguir pela costa do Rio Murli até Javanta.”
“E deve chegar…” continuei, calculando aquela rota.
“Ao pôr do sol, naturalmente.”
“Imagino que até o fim da tarde, muitos já estarão reunidos no Cais de Javanta.”, comentei.
No caminho de volta, achamos uma cabana cercada de um pomar. A placa de inauguração anunciava que era um “trabalho de Eulália Eufrales,” terminado no ciclo de Birilim, no mês de Pacatará. No calendário do mundo exterior, essa data equivale a outubro de 1589.
Muitos passavam por ali, deixando o lugar em condições impecáveis, limpo, arejado e suprido de várias iguarias, um moinho de grãos e um forno tradicional. A dispensa estava suprida com grãos de vários tipos, até arroz de Girólis, nativo do Vale de Dídila, usado para curar doenças do mundo exterior.
Cozinhamos com um grupo de andarilhos que começaram a passar por ali à caminho da praia. Ouvimos mais uma vez o Boleto de Makulelu, notando a parte emocional da composição e seu ritmo contagiante. Cantamos canções tradicionais, como Papare Tese e outras, até que o sol começou a descer no horizonte e o céu começou a alaranjar.
À caminho da praia, ouvimos o coro das pessoas que se reuniam no cais, cantando Nama-Kalilê. Os papagaios começavam a se reunir, fazendo acrobacias pelo ar e brincando com as pessoas, que dançavam na praia. Andávamos na direção da música quando um papagaio azul pousou no ombro de Inassim, que andava a alguns passos na minha frente.
“Ei, Trifiló! Que bom te rever,” disse Inassim, reconhecendo seu velho amigo.
O papagaio trazia dois gravetos amarrados em um bilhete, que entregou com elegância à Inassim.
“Obrigado! Isso é pra mim?”
O papagaio confirmou. Inassim conhecia Trifiló desde pequena. Foi com ele que aprendeu a se conectar com os avatares do mundo dos sonhos e a se comunicar com os papagaios.
Inassim virou para mim e disse:
“Deve ser coisa do Makulelu, um bilhete e dois gravetos!”
Eu me aproximei, curiosa.
“Vejamos,” falou, puxando os gravetos para fora do embrulho. Percebeu que o bilhete era feito de papel de uma folha de Malúlia azul e não resistiu ao poder do seu perfume especial.
“Eu adoro esse cheiro de folha de Malúlia… Aliás, qualquer coisa de Malúlia, as frutas, as sementes, as folhas, até o casco…” apontou, me passando os gravetos para examinar.
“Ninguém resiste mesmo. E veio com uma mensagem?”
Inassim abriu o bilhete, se preparando para ler, quando notei:
“Esses não são simplesmente gravetos.”
“E são o quê?”, perguntou Inassim.
“Olhe. Esse mais claro é de Linho Alato; e o outro é de Ébano de Murlínia… Olhe… acho que ambos foram polidos com o que parece ser óleo de sementes de Abidálida.”
Virei os gravetos, examinando suas extremidades.
“Veja aqui, nas pontas dos gravetos,” percebi, entusiasmada, mostrando-os para Inassim.
“Ah, são cristais?”
“Sim, esses cristais de Lerigen até atravessam o graveto inteiro.”
Inassim finalmente abriu o bilhete e se aproximou, para que pudéssemos lê-lo juntas. Com letras brilhantes, escritas claramente com tinta de semente de Jarik de Lengália, e na caligrafia de Makulelu, o texto dizia:
“Esses bastões contém a memória da minha renovação depois de ter encontrado o drama dos boletos do mundo externo. Neles, vivem os detalhes do que se passou no mundo dos sonhos. Guarde-os bem. Se os usar como grampos de cabelo durante a nossa reunião, a história que vou contar viverá em sua mente.”
Nos entreolhamos, examinando os bastões.
“Parece que a combinação dos bastões abre algum tipo de janela ao mundos dos sonhos,” propus.
Ficamos em silêncio. Inassim pensava. Puxou do bolso castanhas de Jabé da Lirícia e ofereceu uma mão cheia para o Trifiló, que começou a comer imediatamente. Me ofereceu um pouco e colocou algumas castanhas na boca.
Continuamos andando. Depois de um tempo em silêncio, ouvindo aquele canto vindo da praia, Inassim compartilhou sua intuição:
“Makulelu deve ter encontrado algum santuário antigo e entrado no mundo dos sonhos de alguma maneira, perto da nascente do Tacaripim, onde dizem os antigos que os cristais de Lerigen crescem.”
“Os Cânions de Zainã são vastos e remotos. Poucos sabem o que existe por lá. São áreas tão ancestrais que permaneceram inexploradas há muitos séculos,” lembrei.
Continuamos andando. Descemos a costa e chegamos à praia de Javanta. O sol estava quase se pondo e já víamos algumas estrelas começando a brilhar. O rio Murli, um dos maiores afluentes do rio Tacaripim, dava no mar por ali e suas águas se iluminavam, refletindo as mudanças das cores do céu.
Muitos peregrinos se reuniam naquele local, na época do nascimento de Palula, para compartilhar suas experiências no mundo exterior. Essa comunhão serve a um dos propósitos mais nobres da cultura edongueriana: a reforma da consciência das pessoas que estão presas no mundo externo e a busca de caminhos para solucionar os seus problemas mais graves e imediatos. Portanto, nossos esforços, ao longo da história, geraram muitas coisas boas, ajudando as pessoas, mas sem conseguir progresso no campo das mudanças estruturais. Por isso, o debate e a partilha de experiências é uma necessidade fundamental para os nossos peregrinos.
A praia estava cheia. Quanto mais o sol se aproximava do horizonte, mais as pessoas começavam a ficar em silêncio, se preparando para o momento solene. As ondas quebravam suavemente e o som do mar proporcionava um acompanhamento perfeito para aquela ocasião.
Assim que o disco do sol pareceu tocar o horizonte, as pessoas começaram a se agitar e o murmúrio dos sussurros começou a se espalhar pelo ar. Alguns levantavam e apontavam para a boca do rio Murli. Em seguida, a silhueta de Pilé pareceu sair de dentro dos reflexos do sol e subiu do rio ao céu. Se aproximando a toda velocidade, o papagaio anunciou a melodia de Boleto para todos que estavam na praia.
Os outros papagaios, inclusive Trifiló, que estava conosco até então, voaram para encontrar com Pilé e se posicionaram ao longo do cais. Logo depois, o andar de Makulelu podia ser facilmente distinguido, Narizito em punho, sua imagem crescendo aos poucos entre os reflexos coloridos da margem do rio. Inassim virou para mim e disse:
“Aqui, está chegando a hora, vista os bastões de Lerigen!”
“Mas eles não são para mim, são para você,” protestei.
“Lembra como eu te pedi para viajar comigo e escrever sobre esse evento? Os bastões te darão uma visão mais profunda do que Makulelu contar.”
“Como assim?!,” perguntei, tentando resistir a inesperada honra.
“Não se preocupe, Lícia, depois o Makulelu me conta tudo que eu quiser saber nos maiores detalhes, assim que voltarmos para Inavô. Vamos fazer o nosso retiro à dois em breve. Eu tenho uma certeza agora. Hoje, esses bastões são para você usar.”
Aceitei o convite. Era impossível resistir. Inassim pegou os bastões e os amarrou em meus cabelos longos. O contato dos cristais gerou efeito imediato. Ouvi um clique e um zumbido: o céu mudou de cor instantaneamente, revelando estrelas que só apareceriam aos outros de noite. O rio Murli se iluminou por dentro, como se estivesse carregado de luz.
À distância, uma luz azul-clara parecia estar jorrando de Makulelu e Narizito. Fiquei atônita, vendo que aquela luz etérea realmente iluminava o ambiente à nossa volta. Percebi que, com o esforço da vontade, podia projetar minha visão no espaço, me aproximando ou me afastando do que eu quisesse examinar. Enquanto isso, meu corpo permanecia sob controle, na praia, ao lado de Inassim. Nunca havia usado um artefato com cristais de Lerigen. No entanto, encarei aquilo com naturalidade, pois se encaixava muito bem com o meu gosto por escrever.
Makulelu andou com calma até o cais de Javanta. Todos perceberam o que estava para acontecer. Ao sinal do pandeirista Jales Salares, os percussionistas se posicionaram em volta de Makulelu. A anciã da percussão edongueriana, Técia Xalimba, iniciou o ritmo, segurando um groove veloz no seu berimbau. Ela acenou para a multidão e dali, em seguida, surgiu Maniku Loutone, arrastando uma rede de pescar em uma mão e carregando o seu contrabaixo nos ombros.
Enquanto isso, Tassanibari foi para o teclado. Levantando a cabeça, fez um sinal com os olhos e o naipe de sopros, liderado pelo trombonista Rayan de Moura, se aproximou e tomou sua posição em frente à platéia.
Makulelu, de olhos fechados, entrou num estado de profunda concentração e foco. A aura de luz que o envolvia começou a crescer e a tomar um tom azulado. Em breve, uma névoa cintilante nos cercava a todos. Uma chuva de pétalas de flores de luz colorida caia sobre nós, repleta de pirilampos etéricos que fluíam no ar com os ritmos e tons da música.
De repente, o papagaio Pilé fez um alto chamado e Makulelu
De repente, o papagaio Pilé fez um alto chamado e Makulelu pulou no ar, cantando, “Boleto, boleto.”
Todo mundo começou a dançar e eu senti que aquela música era como um grito que espantava as frustrações causadas pelos exageros burocráticos, das dívidas, dos contratos, dos pagamentos, dos impostos, dos documentos, dos registros e de muitos outros números que atrapalham a vida das pessoas no mundo externo. Percebi que a intenção daquele som era plantar a semente de uma consciência que eventualmente extinguiria o poder da burocracia.
Acabei entendendo a frustração de Makulelu, afinal, muitas pessoas vivem e morrem no mundo externo sem saber como é viver além do controle do Estado e do mercado. E quando tentamos esclarecê-las, nos taxam de sonhadores que viajam em utopias.
Ao final da performance, todo mundo celebrou. Abraços foram trocados e uma meditação pela união dos corações à serviço do bem de todos foi aberta, celebrando o nascimento da constelação de Palula. Todos entoaram o mantra Nama-Kalilê juntos e os papagaios levantaram vôo em direção a floresta.
Makulelu ajudou a acender uma pequena fogueira onde preparariam petiscos, ali ao lado de onde havia cantado. Ele andou entre as pessoas e foi conversando calorosamente com aqueles que cruzavam o seu caminho, até que percebeu que todos já estavam se alimentando. Seguiu, então, de volta para o cais e, no palco improvisado, começou a falar.
“Minhas caras amigas e meus caros amigos, colegas peregrinos edonguerianos, fico muito grato de estar aqui convosco, na praia de Javanta, à beira do rio Murli, com esta vista magnífica da Costa dos Alântamos, nessa ocasião especial, iluminados pelo nascimento de Palula em seu ciclo anual.
Em nossas excursões e peregrinações ao mundo exterior, encontramos, quase sempre, todos os tipos de injustiças e tolices. Isso é um grande teste para nossa paciência e determinação. No entanto, não há nada mais tolo do que a burocracia do Estado e os vários instrumentos dos sistemas de controle, que assolam o mundo externo e ameaçam a qualidade de vida das pessoas.
O poder do véu, ao mesmo tempo que nos protege, também nos esconde e isso faz do nosso trabalho no mundo exterior algo muito delicado. Vivemos perguntando: como falar a verdade e ajudar as pessoas sem ofender a sua visão da realidade? Essa é uma das perguntas que todos nós aqui vamos passar uma semana debatendo, mas, certamente, sem encontrar uma resposta definitiva.
A nossa música, no entanto, é uma resposta. Pode não ser definitiva, pode também não ser final… E nem precisa agradar a tudo e a todos. Mas ela reflete e contém o que sentimos, que é a semente do entendimento. Nossa instrução, aberta e expansiva e nossas tradições, voltadas a suprir e a sustentar os processos vitais da criação, garantindo a autonomia do ser no mundo, não se encaixam nos moldes do sistema exterior.
O acesso que temos à tudo que é publicado tanto em Edonguera quanto no mundo exterior, sem controles e filtros, nos coloca em uma vantagem tremenda. No entanto, esse mesmo privilégio nos restringe no campo filosófico. A salada de teorias que circulam no mundo e as correntes poderosas de propaganda diluem as idéias críticas que teriam algum poder de transformação, trazendo abaixo as estruturas de controle. Mas essa questão, em parte e pelo menos filosoficamente, já foi resolvida no mundo exterior de diversas maneiras. No entanto, a maioria das pessoas não sabe.
Na música, feita para o presente quanto para o futuro, há uma esperança. Escrever a música Boleto foi uma espécie de grito, daqueles que acordam a vizinhança toda. Não compramos coisas em Edonguera. Aqui, nós cultivamos, criamos, construímos, fazemos e compartilhamos.
Aqui, prestamos atenção uns aos outros, temos ouvidos, paciência, tempo. Andamos pela noite contemplando o céu, sem nos preocuparmos com o amanhã. Conversamos com os animais, temos experiências no mundo dos sonhos e cantamos. Cantamos muito. Dançamos e nos abraçamos.
O que poderia faltar para nós? Estamos aqui por quê? Qual é a nosso propósito? Seria esse um privilégio ou uma responsabilidade? E as pessoas do mundo exterior, poderíamos culpá-las por ignorarem tudo aquilo que lhes foi escondido ou por não darem ouvidos às boas ideias? São padrões dominantes, duradouros, resistentes.
Essas e outras muitas questões nos preocupam há muitos séculos. Estamos aqui só para fazer a nossa pequena parte em um projeto muito maior do que todos nós. E se não tivéssemos uns aos outros nunca poderíamos buscar esse rumo, por mais lento e temporário que seja o progresso.
O boleto é parte de um mundo onde o consumismo desenfreado e compulsivo leva milhares de pessoas ao desespero. Muitos perecem ou vivem em condições inaceitáveis; vários estão cercados com o próprio luxo que os oprime. Tanto os pobres quanto os ricos sofrem. Uns passam necessidade e outros desperdiçam.
Muitas pessoas tentam fugir da pobreza e como querem ser reconhecidos como pessoas de posses, se endividam comprando coisas que não precisam. Essas pessoas se enterram em contas intermináveis e em montanhas de contas de cartões de crédito e de boletos.
De outro lado, milhares de pessoas são obrigadas a escolherem o que comem pelo preço e acabam tendo sua saúde comprometida, pois se alimentam de produtos processados, cheios de conservantes e produtos químicos perigosos.
Milhões trabalham muito e recebem pouco. E ainda por cima, são forçados a pagar taxas à governos que fabricam a corrupção, a incompetência e o abuso, tudo num teatro lamentável. E passam horas na frente de uma tela de televisão ou nas redes sociais, recebendo passivamente informações selecionadas por outrem, sem perceber como o teor das palavras ouvidas e imagens recebidas afetam suas mentes. São coisas quase completamente intoleráveis para a nossa sensibilidade e é assim que somos testados constantemente no mundo além do véu de Edonguera.
Resolvi escrever Boleto para espantar tudo isso. Busquei entender o sistema, me aprofundando em seus conceitos legais, seus documentos. Quando voltei à Edonguera, senti que algo me buscava, além do vale das Franícias, no coração dos Cânions de Zainã.”
Nesse momento, Makulelu olhou diretamente para mim. Minha mente se projetou para dentro de seus olhos e eu perdi a noção do tempo. Não sabia mais se ele ainda falava.
Eu o vi caminhando por uma rota escondida pela relva, com Pilé como guia. Pilé buscava árvores altas e os picos dos montes. Makulelu projetava sua mente e compartilhava a visão de Pilé, sentindo assim o caminho. Em seus sonhos, se via pesado, cercado por nuvens de boletos e documentos de vários tipos e configurações. Aquelas nuvens cresciam, escurecendo o ambiente. Quanto mais Makulelu seguia o seu caminho, mais as nuvens se acumulavam nos seus sonhos.
Durante o dia, descansava nas chácaras e recantos que ia descobrindo, cada qual com um pedaço de história, revelando a sensibilidade artística dos antigos. Mesmo se sentido cada vez mais pesado, ele prosseguia, caminhando sob a luz da lua e descansando de tarde, quando o sol estava mais forte. Quando se sentia enfraquecido, buscava Narizito.
Olhando para o céu, ligava-se com as estrelas através do seu canto, com as cordas de Narizito ressoando longas notas e acordes. Ficava entre o mundo real e o mundo dos sonhos, onde as vibrações da sua música produziam raios de luz que repeliam as folhas de papel, que começavam a formar uma caverna escura ao seu redor.
No final da semana, Makulelu estava exausto. Não conseguia mais dormir. Quando chegou ao ponto onde o vale das Franícias se encontra com a entrada dos Cânions de Zainã, estava quase se arrastando e já não conseguia mais levantar Narizito. Havia andado a noite inteira. Estava acordado a três dias. Buscou refúgio sob uma grande árvore de Linho Alato, que crescia sozinha por ali.
Deitou-se contra o tronco e começou a observar o balançar das folhas ao vento. Assim, e aos poucos, foi adormecendo. As folhas da árvore foram se transformando em boletos e outros documentos, e começaram a cair em cima de Makulelu. Aos poucos, escureciam, virando uma espécie de piche lamacento que grudava em volta dele, até formar um casulo. Enquanto isso, Makulelu entoava mantras em sua mente, tentando ficar consciente em meio aquilo tudo.
De repente, a enorme rocha que estava atrás da árvore se abriu e o rio começou a inundar o vale. A água começou a empurrar o enorme casulo até que a árvore cedeu, caindo na rachadura da rocha. Com a força da água, o casulo entrou na rocha e seguiu rolando por um longo túnel, até desembocar em um lago alimentado por uma alta cachoeira. Aquele grande boleto de piche, o casulo onde estava Makulelu, rolou até a boca da cachoeira e a atravessou, chegando a uma espaçosa caverna, onde cristais de Lerigen brilhavam.
Não estavam mais no ar, mas sim dentro do fluido universal, algo cuja densidade está entre a água e o ar. O fluido tomava forma através daquela cachoeira, cuja nascente está nas profundezas dos Cânions, forjada por algum processo oculto da criação.
Enquanto isso, dentro do casulo, Makulelu estava cercado de documentos de vários tipos: registros, contratos, pagamentos, contas, boletos, nomes, números, endereços, preços, listas, estatutos e muitas outras coisas. Aquilo tudo ia passando pela sua mente como um caleidoscópio, milhares de itens por segundo. Ele ia lendo tudo, sentindo, com grande amargor, que tudo aquilo representava o tempo das pessoas, perdido no passado, engolido por montanhas de burocracia.
De súbito, os cristais de Lerigen se apagaram na caverna e tudo ficou escuro e silencioso. O piche de documentos do casulo começou a fermentar, fervilhando com bolhas de vapor. Bem baixinho, um barulho de água se movendo parecia vir de longe, enquanto algumas luzes distantes pareciam palpitar, refletindo-se no fluido.
Eram peixes gigantes que se aproximavam, velozes, brilhando com uma fluorescência natural. Pareciam com os bagres azuis da Xarilaia, mas tinham olhos amarelos incandescentes que luziam como faróis, projetando-se à grande distância. Moviam-se velozes e passaram a rasgar pedaços do casulo com seus dentes.
Foi então que vi um enorme caldeirão transparente de cristais de Lerigen, que acendeu com uma luz alaranjada. O interior do caldeirão rodava como um redemoinho de vidro derretido. Os grandes bagres cuspiam ali os pedaços que arrancavam do casulo que envolvia Makulelu. Aquilo foi formando uma massa incandescente que girava e se transformava na centrífuga do caldeirão.
Daí, uma figura surgiu, flutuando no fluido universal e acendendo o ambiente onírico da caverna com um brilho branco-azulado. Era uma mulher, trajando um longo vestido rosa e laranja que reluzia no éter, soltando partículas de luz. A caverna, coberta com cristais de Lerigen, respondia aos seus passos com ressonâncias visuais. Era como se os cristais registrassem os movimentos das almas no mundo dos sonhos.
Notei que Makulelu estava adormecido, com Narizito ao seu lado. Os peixes retiravam as últimas camadas de boletos do seu corpo. A mulher se aproximou de Makulelu e colocou a palma da sua mão em sua testa. Respirou fundo naquele fluido e expirou uma torrente de partículas de luz sob o rosto dele. Fluíam como pétalas de flores e logo pousaram sobre o seu corpo adormecido, derretendo e entrando no chão da caverna.
A mulher flutuou, fez um gesto rápido, apontando para Makulelu e levantando seus braços. Cristais começaram a brotar no chão da caverna, sustentando o corpo de Makulelu como uma cama de pétalas de vidro etérico transparente. Logo, ele estava suspenso em um berço de luz esmeralda.
Depois, a mulher esticou sua mão em direção a Narizito e o instrumento rodopiou como um peão voador e continuou girando, acelerando, formando um redemoinho de luz. De repente, parou. A mulher cantou uma longa nota, em um tom de voz celestial que eu jamais ouvira antes, o que atraiu Narizito às suas mãos.
Com isso, aquele redemoinho de luz que havia se formado sobre Makulelu foi se condensando até que virou uma estrela que parecia se alimentar do seu canto enquanto pairava entre ela e Makulelu. A estrela pulsava, incandescente, como se tivesse a consistência do vidro derretido. A mulher colocou suas mãos naquela massa de cristal fluídico, puxou duas tiras de luz da estrela e colocou aquilo dentro de Narizito.
Então, como se o instrumento fosse feito de alguma massa de madeira maleável semi-líquida, ela juntou as tiras de luz, que agora pareciam haver se coagulado em cristais, com as madeiras do instrumento, fazendo dois bastões, que usou para prender os seus cabelos.
Nisso, Makulelu, com o corpo mais calmo, passou a respirar profundamente. A mulher, com um longo suspiro, absorveu a estrela inteira, que se misturou com a luz natural do seu corpo, formando novos tons e fortalecendo sua intensidade. Em seguida, depois de segurar a estrela dentro de si, expirou uma massa brilhante sobre Makulelu e Narizito. Aquilo parecia formar uma camada protetora de cristal que se entrelaçou com a sua estrutura óssea. O revestimento de Lerigen repararia o choque que Makulelu sofrera com seu mergulho no ácido perene da mente burocrática do mundo exterior.
Makulelu abriu seus olhos, que custaram para se ajustar ao estranho ambiente, rodeado de luzes.
“Onde estou?”
“Estás em minha casa,” respondeu a mulher imediatamente. “Aqui existe uma fonte de Lerigen que está aos meus cuidados há milênios,” arrematou.
Makulelu, ainda um pouco atordoado, buscava se situar melhor. Tentou fazer uma pergunta, mas sua garganta estava cheia do cristal fluídico, que seu corpo ainda estava absorvendo. Adivinhando sua pergunta, a mulher olhou em seus olhos e disse:
“Sou Marigadê, a mãe dos peixes e um dos avatares das águas que envolvem a criação. Cuidamos dos peregrinos de Edonguera que retornam do mundo externo trazendo em si experiências de realidades pesadas. Estamos no mundo, mas somos daqui e nossa sensibilidade deve também ser respeitada. Por mais que nos concentremos em ajudar as pessoas no mundo exterior constantemente, com resultados que, mesmo em pequena escala, nos tragam grande satisfação, não podemos esquecer de nos cuidar.”
Makulelu se sentia renovado. Respirava profundamente e havia recobrado o uso de sua voz.
“Finalmente, as energias que te rodeavam estão balanceadas e resolvidas. Tua consciência dos males do mundo externo e da praga da burocracia, se aprofundou, mas não deixaremos a sua mente e o seu espírito se afundar com todo aquele peso, custo e tempo perdido. Agora veja!”
O caldeirão de cristal, cheio até a boca, começou a virar lentamente e logo despejava seu líquido alaranjado em longas e extensas plataformas retangulares. Ali, grandes rolos giravam, afinando e esticando aquela massa, que vinha originalmente daquele casulo de boletos, documentos e piche que os bagres retiraram.
“Estamos quase lá,” disse Marigadê.
Makulelu permaneceu ali, um tanto atônito, acompanhando aquela estranha produção com toda a atenção.
“Já entenderás. É assim que transformaremos a opressão do sistema colonial do mundo externo, em inspiração para liberdade criativa,” falou, apontando para o caldeirão, que finalmente se esvaziara completamente.
“Nossa compaixão para com as pessoas do mundo externo e os seus problemas intermináveis é extensa e duradoura. Ela vive e cresce, transcendendo as gerações em nossas almas e em nossos corações. Essa força, que muitos chamam de amor ao próximo, se espalha também pelo mundo externo, levada pelos edonguerianos, com seus atos, palavras, e missões. Há muitos que não encontram o caminho de volta para Edonguera e acabam ficando por lá, tendo forjado novos laços afetivos com seres do exterior. Mas isso é também um sucesso, pois não somos melhores que ninguém, só tivemos a fortuna misteriosa de nascer aqui, neste lugar sem igual.”
Os olhos de Makulelu ficaram marejados, enquanto incontáveis experiências que teve no mundo além do véu corriam pela tela de sua mente.
“Mas se você é mesmo uma avatar ou mãe dos peixes e vive no mundo dos sonhos, por que falas como se fosse uma pessoa daqui?”
Ela se manteve em silêncio por mais um pouco. Depois falou:
“Agora não há tempo para discutir o desenvolvimento dos seres da criação, nem a minha natureza ou a minha trajetória ao longo dos anos até chegar aqui. Lembre-se, cada coisa a seu tempo,” falou em um tom distante, como se buscasse inspiração em um passado remoto.
Makulelu ficou em silêncio. Marigadê continuou:
“Não podemos cuidar de tudo e de todos ao mesmo tempo, Makulelu. Lembre-se disso também.”
Nisso, Makulelu notou que folhas gigantes de papel se espalhavam pelo ambiente, se estendendo até além do horizonte. Parecia medir dezenas de quilômetros. Me projetei para o alto, para ver a extensão do fenômeno, mas não pude constatar.
Logo em seguida, aquelas estradas de papel começaram a se dobrar e a se mover ao nosso encontro, vindo de várias direções diferentes. Aquilo começou a formar verdadeiras colinas de papel que começaram a se acumular em nossa frente. Makulelu olhava para o alto e, maravilhado, não conseguia ver o topo do que, àquele ponto, se transformara em uma enorme torre de papel. Marigadê notou o que se passava na cabeça de Makulelu:
“Essa enorme torre, que parece não ter fim, mal equivale à burocracia usada para controlar uma só pessoa no mundo exterior. Nem queira saber o gasto de recursos e tempo que isso tudo representa,” falou, melodiosa.
“Nem sei mesmo se queria saber o resultado desse cálculo,” respondeu Makulelu.
“Há pessoas, Makulelu, cuja vida é tão saturada de burocracia, que, na verdade, mal vivem, tendo o seu tempo quase que completamente dominado pelo sistema. Suas mentes estão saturadas com muitos conceitos e lógicas que só servem para manter aquele modo de opressão em funcionamento. Esses padrões mentais estão entre os nossos maiores obstáculos, pois são manifestados também no campo dos sonhos, formando uma verdadeira prisão para o espírito.”
“E o que são essas torres de papel que brotaram e cresceram?”
“Pois é, Makulelu, se há progresso no mundo exterior, é mesmo tão vagaroso que mesmo nós mal percebemos. E, claro, muitas vezes constatamos que o mundo regride. Portanto, temos a responsabilidade de encarar isso e assim vemos que as pessoas que acordam ou que vêm à Edonguera, trazem em si as sementes de um futuro melhor.”
Marigadê, então, começou a entoar mantras que ativaram os cristais de Lerigen da caverna e as torres de papel começaram a desmoronar. Em enormes cascatas, o papel ia caindo, escorregando para dentro de fendas que haviam se formado nos cristais do chão da caverna. Aos poucos, vi o chão se abrir, revelando grandes baús que, boiando no fluido universal, vinham repousar na frente de Makulelu. Ele parecia perplexo, escaneando a paisagem e tentando entender o que acontecia.
Marigadê fez um gesto rápido e o baú mais próximo foi na direção de Makulelu, parando na sua frente. Ele ficou quieto, olhando para ela. Marigadê, com o seu olhar, assinalou para que Makulelu se aproximasse e abrisse o baú. Este se abriu com o seu toque, como se adivinhasse a sua intenção, revelando o seu conteúdo.
“São cadernos de folhas de Malúlia azul,” anunciou Marigadê.
Makulelu começou a examinar os cadernos e a folheá-los, notando que estavam em branco. Marigadê soltou seus cabelos e entregou os bastões para Makulelu.
“Esses bastões contém a essência de tudo o que ocorreu por aqui hoje. As pontas desses cristais estão carregadas com o poder dessa caverna. Quem os usar, conectando-os com os cabelos, enxerga o que acontece no plano dos sonhos a sua volta,” explicou.
Makulelu examinou os bastões, notando que lembravam a textura dos veios das madeiras usadas em Narizito.
“Sim, eu revesti os cristais nas madeiras de Narizito,” disse Marigadê, “para que permaneçam ligados ao instrumento, mesmo no mundo exterior, além do véu de Edonguera. Mande-os para Javanta hoje mesmo.”
“Mas não tem como,” reagiu Makulelu.
“Tem sim. Use a ponta dos cristais em uma folha de Malúlia e escreva um bilhete para Inassim.”
Makulelu simplesmente obedeceu e ficou maravilhado ao ver que os bastões de cristais de Lerigen tinham uma luz interna que, de fato, impelida pela força da vontade, poderia ser usada para escrever em folhas de Malúlia.
“Isso,” anunciou Marigadê assim que Makulelu terminou de escrever, “estamos quase lá.”
Em seguida, Marigadê deu uma pirueta e o fluido universal começou a agir mais rapidamente. Depois, passou a girar como em uma centrífuga, fazendo um enorme redemoinho que suspendeu Makulelu. Marigadê, com gestos que controlavam o fluido, fez Narizito ir pousar nas mãos de Makulelu. O bilhete se enroscou rapidamente em volta dos bastões e o embrulho entrou dentro do tampão do Narizito.
“Não resista agora,” instruiu Marigadê, “além da cachoeira que cobre essa caverna, siga a pé, descendo pelo vale até o ponto onde o rio Murli desemboca em Javanta.”
“E todos esses cadernos? Qual o sentido disso tudo?”
Mesmo enquanto Makulelu fazia essa pergunta, a corrente de fluido universal começou a empurrá-lo para cima em alta velocidade.
“Sentirás em Javanta, o chamado do nosso Singhirô,” uma voz respondeu.
Makulelu perdeu de novo a noção do tempo. Quando deu por si, estava deitado na beira do lago, em frente a cachoeira que serve de portal ao recanto de Marigadê. Achou que havia sonhado, delirando de cansaço. No entanto, quando pegou Narizito, notou que dentro dele havia um embrulho, com os bastões de Lerigen. Foi então que recobrou suas memórias de tudo que Marigadê havia dito.
Olhou a sua volta e viu uma grande árvore de Linho Alato que estava na boca do vale. Dali já se via a extensa praia de Javanta, se espalhando ao longo do horizonte.
Antes de prosseguir, Makulelu cantou alguns versos improvisados, acompanhado de Narizito. Em instantes, Pilé anunciou sua presença com um alto chamado, “boleto”! Makulelu levantou-se para recebê-lo e Pilé pousou no braço de Narizito.
“Pilé, ache o Trifiló o mais rápido possível, e entregue isso a ele. É para Inassim.”
Makulelu entregou-lhe o precioso bilhete contendo os bastões de Lerigen e começou sua caminhada em direção à Javanta. Em algumas horas, Pilé retornou. Makulelu percebeu que os outros não estavam tão distantes.
Foi neste instante que eu ouvi um estalo, que era como o abrir de uma enorme rolha. Percebi que estava de volta no cais da praia de Javanta, prestando atenção no que Makulelu estava dizendo. Demorou um pouco para que eu me situasse. Meus olhos ainda focavam nas pupilas de Makulelu. Intuí que ele tinha acabado de falar de seu encontro com Marigadê. Eu não tinha a menor ideia do que ele havia dito até então, mas parecia que ele estava contando um caso que ocorrera recentemente no Brasil.
“… foi aí que finalmente resolvemos descer ao porto da cidade de Santos, onde Birí viria nos buscar. Maniku estava dirigindo o carro naquele trânsito infernal, o que sempre complica nossas vindas ao Brasil. Seguimos cantando uns grooves novos inspirados em sons brasileiros raros que descobrimos por lá. Estávamos sem muita pressa. Uma hora depois, começamos a ficar com uma fome enorme. Resolvemos então parar em algum lugar pela estrada para comer alguma coisa, talvez até uma pamonha ou coxinha, petiscos que são populares por lá, mas raros em Edonguera.”
Makulelu fez uma pausa, tomou um gole de suco de Abidálida e continuou, enquanto o povo ali reunido escutava cada palavra com a maior atenção.
“Paramos em um posto à beira da estrada, já perto de Santos. Fui ao banheiro lavar as mãos. Senti que Narizito começou a zunir, apontando para um canto, para algo que parecia estar atrás do banheiro. Me concentrei naquele zumbido de Narizito. Em minha mente, ouvi o que parecia ser alguém chorando com timidez, de uma maneira tão reprimida, que ninguém podia ouvir.”
Eu conseguia, desta vez, observar a cena se passando, como se estivesse sendo projetada no ar, logo acima da cabeça de Makulelu. Mais uma vez, perdi a noção do tempo e minha consciência se misturou com aquela imagem. Foi como se eu me transportasse para aquele lugar no Brasil.
Makulelu se sentiu muito incomodado. Sabia que deveria agir imediatamente. Quando saiu do banheiro, seu olhar encontrou os olhos de Maniku, que entendeu imediatamente que algo urgente acontecera. Maniku tentou se levantar de supetão, mas Makulelu, com um gesto preciso, o acalmou de longe, assinalando que iria investigar algo e pediu que esperasse.
Em seguida, Makulelu entrou na área de serviço que ficava atrás do banheiro. Viu uma senhora que, apoiando-se no cabo da vassoura, limpava o chão. Sua feição amargurada revelava um sofrimento intenso. Quando ela ouviu os passos de Makulelu, percebeu que não estava sozinha e, rapidamente, passou a limpar as lágrimas dos olhos, tentando recobrar sua compostura.
Makulelu ficou ali parado, olhando para ela, sem falar nada. A senhora manteve sua cabeça baixa e continuou seu serviço, focada em limpar o chão. No entanto, percebeu um flash rápido e intenso de luz que ocorreu quando Makulelu tirou Narizito de sua capa e se virou. Levantou seu rosto, surpresa, revelando sua idade avançada de anciã.
Em um instante, Makulelu intuiu quase tudo o que se passava com ela. Ficaram ali, quietos, se entreolhando. Makulelu, com sua percepção empática, estava absorvendo a ressonância que parecia causar tanta dor no coração daquela senhora.
“Carregas muitas dores, senhora. O teu chorar me tocou profundamente. Se deixares, quero te ajudar.”
A maneira de falar e o sotaque de Makulelu pegaram a senhora de surpresa. Ela não sabia de onde ele poderia ser.
“Nada é de graça nesse mundo, senhor. Eu trabalho dez horas por dia pra tirar um salarinho. Meu marido morreu faz cinco anos e só deixou dívidas… Fiquei sozinha com meus gatos de rua, mas vou perder minha casinha. Estou endividada, enterrada em contas, com o nome sujo no crédito, pego dois ônibus para vir e voltar daqui, acordo às cinco da manhã.”
Fez-se uma pausa, enquanto Makulelu absorvia aqueles fatos, concentrado no assunto e pensando em uma solução. Ela puxou da bolsa um grande maço de papéis.
“Tenho tudo isso pra pagar! Eu não sei como. Estou exausta. Vou acabar morrendo na rua e aí isso tudo vai passar, pela glória de Deus.”
“Qual o seu nome, senhora?”
“Dona Maria das Cruzes, senhor…”
“O meu nome é Makulelu, minha amiga. Não venho daqui. Mas estou aqui por um propósito mais alto,” falou, sentando em um cadeira e posicionando o Narizito para tocar.
“Vou tocar uma canção para ti.”
Dona Maria ficou paralisada. Estava com medo que seu chefe viesse gritar com ela, já que um maluco resolveu tocar violão para ela sem nenhuma explicação.
“Não se preocupe, ouça…”
Makulelu começou a dedilhar Narizito e a acompanhá-lo com sua voz. Aquilo teve um efeito imediato na feição de Dona Maria, que começou a se acalmar. De repente, a porta se abriu e o gerente do estabelecimento entrou, gritando:
“Que que é isso, Dona Maria!? Brincando no serviço agora?!”
Makulelu, como se esperasse esse momento, virou-se para aquele senhor com toda a calma.
“Meu irmão, apenas ouça…”
O gerente, pasmo, ficou atônito, tentou falar mas não conseguiu.
“Volte para a sua estação,” cantou Makulelu, com uma melodia simples.
O gerente simplesmente virou-se e foi embora como se nada houvera.
“Ele não te perturbará mais,” disse Makulelu para Dona Maria e continuou a cantar até que pôde perceber que a esperança estava ressurgindo na expressão dela.
“Meu filho,” ela gritou, “estou respirando direito de novo!”
Fez uma expressão séria, olhando para Makulelu, de cima para baixo, com curiosidade e energia.
“De onde você disse que vem mesmo, meu filho?”
“Dona Maria, eu não tenho muito tempo. O nosso saveiro está no cais pronto para partir. Para ser feliz, devemos inventar o sonhador. Olhe!”
Makulelu levantou o Narizito, respirou fundo e soltou o ar encantado, carregado de intenção, dentro daquele violão de Linho Alato. Colocou o instrumento no chão e o rodopiou com um impulso da sua mão. Narizito começou a girar cada vez mais rapidamente e, por si, levitou. Dona Maria mal acreditava no que estava vendo e deu um tapa no próprio rosto para tentar acordar, o que não adiantou.
Narizito não poderia ser mais distinguido, estava mesclado no borrão formado com o seu giro, quando o ambiente se escureceu e raios brotaram do instrumento, criando um holograma: estavam dentro de uma casa espaçosa e cheia de plantas, e comida, em uma colina, com vista para a praia de Lengália, onde as pessoas cantavam e dançavam, cozinhavam e comiam, descansavam e dormiam. Dona Maria não pôde se conter.
“O que é isso? Que lugar é esse? É um sonho ou o quê?”
Continuou olhando para todos os lados, maravilhada.
“Essa é a nossa ilha, e o nosso lar… Somos felizes. Nem sabemos o que é um boleto.”
“Impossível,” exclamou Dona Maria, incrédula.
Neste instante, Makulelu estendeu sua mão, o que fez Narizito diminuir sua velocidade até parar de girar, interrompendo a projeção holográfica.
“Isso sim parece impossível,” apontou Makulelu.
Dona Maria ficou energizada com a experiência.
“Eu acredito,” declarou entusiasmada.
Por uns momentos, ela delirou, se perdendo em filmes que se projetavam em sua mente, lembrando das imagens e cenas que acabara de experienciar. Makulelu, paciente, observou em silêncio.
“Se for verdade, me leve, por favor, pelo amor de Deus! Me deixe viver em paz. Quero viver no seu mundo”, rogou com os olhos marejados e focados em um lugar que agora vivia no campo dos seus sonhos, plasmados na tela da sua imaginação com uma força que jamais experienciara.
“Pode deixar Dona Maria,” afirmou Makulelu. No entanto, Dona Maria não estava registrando o que acontecia. Seu sistema nervoso estava ainda saturado com as frequências sonoras de Narizito e Makulelu. A porta se abriu.
“Precisamos ir andando!”
Era Maniku, que estava preocupado, pois Birí zarparia em breve. Makulelu, com um gesto, apontou que era um momento delicado. Logo em seguida, Maniku notou o que estava acontecendo. Dona Maria delirava.
“Meus gatos,” exclamou Dona Maria, “não posso deixá-los para trás!”
Makulelu então, ouvindo o teor daquelas palavras e a profundidade da emoção que projetavam, sentiu que Dona Maria não seria feliz sem seus gatos, mesmo em Edonguera.
“Maniku, não podemos deixá-la neste estado e agora temos que levá-la para Edonguera. Chame o Pilé enquanto eu cuido de Dona Maria. Te encontro no carro.”
Maniku seguiu para o estacionamento imediatamente, abriu o bagageiro e pegou a sua rede de pesca, feita de fibras de Jabé da Lirícia. Com um braço, rodou a rede sobre a sua cabeça. A rede começou a zumbir, formando uma espécie de guarda-chuva de força que zunia, amplificando o seu sinal no campo etérico
“Isso ajudará com a transmissão,” pensou.
Notei então que havia me deslocado no campo das memórias de Makulelu com a força da vontade. Percebi que a presença de Maniku, que neste momento estava ao lado de Makulelu no cais de Javanta, dava mais nitidez àquelas memórias. Olhei em direção ao restaurante e consegui notar, vendo através das paredes, que Makulelu, com a ajuda de Narizito, havia apaziguado Dona Maria e gravado o seu holograma. Agora estavam seguindo juntos, lentamente, para o estacionamento.
A rede de Maniku, que girava rapidamente, começou a desaparecer, entrando no campo dos sonhos e pairando sobre o carro na forma de um guarda-chuva de luz magnética. Maniku, então, pegou no carro o violão que a luthier brasileira Jaunira Erles lhe havia presenteado em sua última visita ao santuário de pássaros, perto da cidade de Santos. Entoando o mantra Nama-Kalilê e se acompanhando no violão, Maniku buscou a ajuda dos papagaios da região.
Chegaram, então, Makulelu e Dona Maria, que estava calma.
“Ela logo adormecerá, me ajude.”
Maniku e Makulelu ajudaram Dona Maria a entrar no carro. Makulelu percebeu o campo formado pela rede de Maniku. Usando o mantra Nama-Kalilê em sua mente, e focando em Pilé, Makulelu pôde ver o que se passava com o papagaio. Pilé já estava à caminho, voando à toda velocidade com um grande grupo de amigos alados.
“O que vamos fazer sobre a questão dos gatos?”, perguntou Maniku.
“Tenho uma idéia que acho que vai funcionar. Estou com um holograma da mente de Dona Maria carregado em Narizito.”
Maniku recobrou sua rede do campo etérico e colocou no bagageiro. Makulelu colocou o cinto de segurança em Dona Maria e disse:
“Não podemos chamar muita atenção. Não vamos ter como esconder os papagaios. Vamos achar uma clareira na floresta no caminho do cais. Pilé deve nos avistar em menos de dez minutos.”
Maniku fez então o combinado e seguiu em direção ao cais onde Birí e os outros esperavam. Dona Maria estava em paz e adormeceu, quando eles saíram da estrada principal e entraram em uma estradinha de terra que subia até um mirante em cima de um morro.
“Este é um ótimo ponto estratégico. O que achas, Maniku?”
“Exato. Vou estacionar ali na frente, onde podemos ver a costa do mar pelo alto.”
“Precisamos estar no alto para poder traçar a rota até a casa e Dona Maria e seus gatos.”
Maniku concordou e virou para escanear o horizonte.
“Makulelu, veja!”
Pilé, seguido de vários papagaios e araras, estava chegando. Os pássaros, em silêncio, se posicionaram nas árvores em volta do mirante e Pilé pousou no ombro de Makulelu.
“Meu amigo, não temos muito tempo,” disse a Pilé, “precisamos, primeiro de tudo localizar a casa de Dona Maria agora mesmo.”
Maniku colocou a mão na cintura, curioso para saber como fariam aquilo.
“Maniku, ative a sua rede e faça uma janela para o campo dos sonhos em direção ao sudeste. Vamos começar por lá, pois senti que ela deve vir daquele lado.”
Maniku pegou sua rede de pesca, girou e aquilo formou uma janela para o mundo da mente.
“Pilé, agora preste atenção, vamos ativar as memórias dela pelo holograma mental.”
Daí, pegou Narizito, e ativou o holograma de Dona Maria com o canto “tuk tiram dek tuk tiram,” o que conectou suas memórias e conhecimentos com a janela de Maniku.
“Veja,” apontou Makulelu, “ali!”
Pela janela astral, ficava claro que o lugar mais frequentado por Dona Maria se situava ao longo de um córrego, atrás de uma pequena e humilde vila de pescadores. Ali estaria o seu casebre e, também, seus gatos. Makulelu puxou Narizito e sentou-se em uma pedra na frente da janela etérica.
“Venha, Pilé!”
Imediatamente, Pilé subiu no braço de Narizito. Makulelu, com delicadeza, tocou na plumagem do peito de Pilé, revelando um amuleto. Era como um medalhão de Ébano de Murlínia, coberto de padrões e com um disco de cristais de Lerigen no centro. Makulelu entoou um mantra harmônico e o amuleto se ativou, passando a brilhar com uma luz esmeralda.
“Vou transferir o holograma de Dona Maria,” avisou Makulelu. “Pilé, se prepare!”
Pilé começou a bater suas asas. Do amuleto surgiu um clarão de verde elétrico que ligava o papagaio com Narizito. Makulelu ativou o tensor, feito do metal lirícium, forjado na Xarilaia, que está dentro do braço do instrumento. Nisso, uma luz alaranjada revestiu o ambiente e Makulelu, escolhendo a harmonia apropriada, transferiu, com uma melodia, o holograma físico de Dona Maria e as imagens de suas melhores lembranças com seus gatos.
“Pronto, agora esse é o plano: eu e Maniku vamos seguir para o cais. Os peregrinos estarão zarpando em duas horas. Não temos tempo para ir buscar os gatos de carro.”
“Sim,” concordou Maniku, “podemos perder o barco para Edonguera.”
“Maniku, vamos precisar da rede. Pilé, organize as araras e os papagaios. Peça para as araras encontrarem uns peixes frescos e levá-los para a casa de Dona Maria. Enquanto isso, carregue com os papagaios a rede de Maniku até lá. Use o amuleto de Lerigen para ativar e controlar o holograma de Dona Maria. Nos encontramos no saveiro do Capitão Birí em uma hora.”
Pilé, com um salto, fez uma série de chamados e oito papagaios se apresentaram. Eles agarraram a rede de Maniku e levantaram voo. Pilé, antes de os seguir, voou em círculos e pediu para as araras mais ágeis que encontrassem alguns peixes o mais rápido possível e que seguissem para a casa de Dona Maria. Os pássaros se apressaram.
Foi então que percebi que o amuleto de Lerigen, que o papagaio vestia, permitia que eu projetasse minha consciência para observar o que acontecia ao seu redor, graças ao efeito dos bastões de Marigadê. Resolvi então seguir os papagaios, intrigada. Fiquei curiosa para ver como executariam o plano de Makulelu.
Pilé voou diretamente para a casa de Dona Maria. No caminho, ia se familiarizando com as imagens dos gatos gravadas no amuleto. Eram dois gatos e uma gata, um branco e preto de olhos amarelos, que Dona Maria chamava de Einstein e, outro, marrom e branco, o Carlitos. A gata era quase toda branca, com orelhas pretas e olhos azuis. Chamava Charlene. Deveriam estar nos arredores da casa de Dona Maria.
Pilé e seus amigos encontraram o lugar rapidamente. Era uma casinha despretenciosa, com flores tímidas disposta de maneira singela em uma pequena varanda. Por cima, se via que um pequeno caminho de terra que vinha da rua principal dava uma certa privacidade ao local. Por mais singelo que fosse, havia um toque especial na maneira em que Dona Maria organizava as poucas coisas que tinha. Uma área estava designada especialmente para os seus gatos, com almofadas e pratinhos para ração e água, tudo sombreado por um grande arbusto de amoras.
Quando se aproximaram, Pilé sinalizou para que os papagaios diminuíssem sua velocidade, exercendo cautela, sabendo que os felinos do mundo externo podem ser perigosos para vários tipos de pássaros. Pilé pairou sobre a casa para observar o perímetro.
Os gatos não pareciam se encontrar por ali no momento. Olhando ao seu redor, Pilé notou que havia dois colibris que iam e viam para beber água com açúcar na varanda da Dona Maria. A língua dos colibris é bem conhecida pelos papagaios de Edonguera. Como se sabe, o colibri simboliza nossa ilha há milênios.
Eu não conheço os chamados das aves ainda muito bem, especialmente quando são de lugares e espécies diferentes. No entanto, percebi claramente que Pilé perguntou para os colibris se eles conheciam os gatos que moravam ali. Eles explicaram que Dona Maria os deixava dentro de casa quando ia trabalhar, com receio de que algo acontecesse com eles. No entanto, naqueles dias, estava muito nervosa, saiu atrasada e acabou deixando uma janela aberta. Os gatos haviam escapado, mas sempre voltavam.
Pilé levantou voo e fez um alto chamado, buscando saber se as araras haviam achado a isca. Em seguida, examinou a área em frente da casa e percebeu que os gatos usavam um caminho para o mato que dava acesso ao córrego que passava atrás. Com chamados rápidos, apontou o local exato para os papagaios colocarem a rede. Em breve, ouvi notas coloridas que começaram a se harmonizar. Eram as araras, que cantavam a sua chegada.
Os papagaios colocaram a rede de Maniku embaixo da grande amoreira e as araras colocaram os peixes na rede, que haviam cortado com seus bicos e garras em filés. Até então, não havia nenhum sinal dos gatos. Assim que tudo estava posicionado, os papagaios e as araras se esconderam nas árvores ao longo do córrego para não chamar atenção de nenhum habitante dali e ficaram em silêncio, ouvindo tudo que se passava e esperando para a conclusão do episódio.
Pilé, então, subiu na rede de Maniku. Bateu suas asas rapidamente e ficou pairando no ar. Do amuleto, uma luz começou a crescer e a mudar de consistência, formando uma névoa cristalina que foi aos poucos se solidificando, até que Pilé parecia ter se transformado em uma versão de Dona Maria. Aquela figura, agora controlada por Pilé, usava seu vestido de trabalho e estava com o amuleto pendurado em seu pescoço, que brilhava e pulsava em um intenso verde esmeralda. Com a minha visão, eu ainda podia ver através do simulacro de Dona Maria. Pilé estava controlando a figura, suspenso em seu centro.
“Ah, posso falar com a língua humana agora,” exclamou.
Olhou para os lados, passou a mão pelas suas roupas, como se estivesse tirando o pó e viu que o amuleto parecia agir como uma bússola, apontando para a direção dos gatos.
“Deixe-me ver…”
Agachou e reposicionou os peixes na rede com cuidado, colocando os filés para cima. Pegou um pedaço e levantou-se.
“Tudo certo, vamos lá.”
Pilé, então, controlando o holograma, seguiu à caminho do córrego, usando a voz de Dona Maria, chamando os gatos para comer.
“Charlene, Carlitos, Einstein!”
Ela continuou até a beira do córrego, e foi chamando para todos os lados.
“Mamãe chegou! Quem quer papinha?”
Percebi que os gatos descansavam perto da água, onde caçavam camundongos.
“Quem quer um filezinho de peixe?” falou o holograma, abanando um pedaço de pescado e espalhando o seu cheiro. Esperou um pouco em silêncio. Ouvia-se o fluir do córrego e os pássaros.
“Meus amores… estou aqui… quem quer um peixinho fresco?”
De repente, surgiram dos arbustos os três gatos. Estavam esfomeados e correram para os pés de Dona Maria, com os rabos levantados, ronronando e rodeando suas pernas.
“Por aqui! Venham meus amores, vamos pro quintal.”
Em seguida, a figura de Dona Maria foi andando rapidamente de volta para o quintal, enquanto os gatos a seguiam colados em suas pernas, miando cada vez mais alto e insistentemente, na expectativa de matar a fome. Quando os gatos avistaram os filés em cima da rede de pesca de Maniku, correram, cada um atacando o seu pedaço.
A figura de Dona Maria então tocou no amuleto e entoou um mantra. A rede, em uma questão de alguns segundos, se transformou em uma cesta segura e confortável, com uma tampa no topo e várias alças para os papagaios e as araras poderem carregá-la com facilidade. Daí, o holograma começou a se desmanchar e a voltar para dentro do amuleto de Lerigen, que, por sua vez, retornou à plumagem no peito de Pilé. A imagem de Dona Maria se desfez em uma névoa de orvalho brilhante que logo se esvaneceu, espalhado pelo poderoso bater de asas de Pilé. Os gatos, loucos de fome, estavam tão compenetrados com os peixes que mal percebiam o que estava acontecendo.
Passei minha consciência para o ponto de vista do amuleto e vi que a rede ficava invisível enquanto estivesse ligada com o amuleto pela força de vontade de Pilé. As araras e os papagaios pegaram a cesta e alçaram vôo, rumo ao cais.
Enquanto eu voava com eles, vi que ainda havia muita beleza nessa região, florestas, cachoeiras e mirantes incríveis, de onde avistamos algumas ilhas, que se espalhavam ao longo do vasto horizonte. Notei também, com uma dor no coração, a pobreza reinante na vida das pessoas da região, o que nos compele, edonguerianos, a tomar a iniciativa de comandar vários projetos de suporte.
Devido a uma tempestade eminente no meio do caminho até Edonguera, o saveiro de Birí não chegaria ao véu se não zarpasse antes do combinado. Eu me mantinha ligada às experiências e podia ver a cesta com os gatos sobrevoando a margem costeira por cima, cercada de lindas araras. Foi quando o amuleto zuniu com uma mensagem. Era Makulelu. Eu senti, vi e ouvi aquela mensagem dentro de mim com tanta nitidez que fiquei um tanto eletrificada.
Makulelu estava mandando suas coordenadas através de Narizito. Vi através dos olhos de Pilé o firmamento se abrir e um caminho de luz ser traçado. Pilé deu um forte chamado e os papagaios e as araras mudaram o rumo na hora: seguiram para o alto mar, aumentando sua velocidade. Nisso, os gatos perceberam a altura em que estavam e que abaixo só havia água: se seguravam, com unhas e dentes na cesta e miavam desesperados. Depois, já se via o saveiro com as cores de Edonguera seguindo seu caminho.
Me projetei com o som de Narizito de volta para o barco.
“Veja,” exclamou Maniku, apontando para o alto, “o Pilé tá chegando!”
Assisti aos papagaios e as araras trazerem a cesta para o barco com o maior cuidado. Maniku, entoou um mantra que desenlaçou a cesta, que voltou para sua forma original de rede de pesca. Os gatos estavam tão confusos quanto felizes, cercados de estranhos. Para evitar que ficassem muito assustados, Makulelu cantou na hora uma melodia com acordes profundos de Narizito, o que serviu para colocar os gatos para dormir.
“Finalmente, agora podemos relaxar,” apontou Makulelu.
“Makulelu, Maniku… estamos já com a rota estabelecida até Edonguera,” informou o Capitão Birí.
“E a previsão?”
“Vamos conseguir evitar a tempestade, mantendo essa velocidade.”
“Perfeito,” respondeu Makulelu.
“E a Dona Maria, Maniku, como está?”
“Pelos meus cálculos, dormirá por um bom tempo, pelo menos até a época da reunião dos peregrinos em Javanta, ao nascer de Palula,” respondeu Maniku.
“Os vislumbres de sua imaginação,” continuou, “ainda estão muito fortes, o que a coloca em uma posição frágil e delicada.”
“Sim,” concordou Makulelu, “por isso, não podíamos deixá-la no mundo exterior. Só poderemos tratar disso com a atenção necessária em Edonguera, além do véu. A energia da ilha deve acalmá-la gradualmente.”
Ouvi mais um estalo e me vi novamente em Javanta, na frente do cais, onde Makulelu estava terminando de falar.
“Aqui está a Dona Maria, ainda adormecida,” apontou Makulelu.
Dona Maria estava deitada em um leito repleto de almofadas e lençóis de linho da Lirícia, que havia trazido até o cais. Os gatos, felizes e bem alimentados, esperavam, pacientes, ao seu lado. Em seu rosto, uma expressão serena indicava que seus sonhos estavam se acalmando sob o efeito do véu de Edonguera.
“Não será mais a Maria das Cruzes, nem mais uma Maria das Dores,” anunciou Makulelu, “seu novo nome será Maria de Marigadê.”
A multidão aplaudiu. Makulelu apontou para o firmamento e entoou o antigo mantra de Yopá, ‘Sakini Marigadê’, primeiro sozinho. Na segunda vez, todo mundo cantou junto. Cada vez que cantavam, novas harmonias iam se formando.
Nesse momento, do alto da Costa dos Alântamos um clarão de luz etérico-elétrica surgiu e um zunido harmônico começou a soar. Gritos de admiração e gratidão soaram espontaneamente entre as pessoas.
“É Marigadê, vindo nos abençoar!”
As pessoas celebravam em antecipação.
“Marigadê,” clamavam e suspiravam, respeitosos.
Em seguida, os peregrinos notaram:
“É um singhirô!”
Nisso, todos começaram a cantar mais fortemente junto com Makulelu. Um enorme barco a vela voador azul cintilante começou a surgir no horizonte, brilhando como se as estrelas do firmamento estivessem espalhadas em seu casco e em suas velas. Havia dezenas de pessoas em Javanta com os seus instrumentos musicais, muitos dos quais eram feitos de diversos materiais edonguerianos que se ligavam com as forças etéricas da natureza.
Quanto mais o grande navio voador se aproximava, mais se formava um elo elétrico entre ele e os instrumentos na multidão. Um grande disco de cristais de Lerigen inundava o singhirô de luz por dentro, formando uma névoa que brilhava com uma luz rosa-azulada que inundou o ambiente e acalmou a todos, segurando os acordes que definiram o tom das melodias daquele momento. Todos os instrumentistas se sintonizaram aos ritmos e à harmonia do grande navio fluorescente.
Obra de Núlia Tyers, “O Singhirô de Marigadê em Javanta” (2023).
O singhirô foi se aproximando até que finalmente pairou sobre o cais. As pessoas abriram um grande espaço e o barco pousou, enquanto todos improvisavam uma verdadeira sinfonia, em frente ao lugar onde Dona Maria ainda repousava.
Aos poucos, a música começou a fluir mais calmamente. Os percussionistas dividiram o tempo e foram diminuindo a velocidade da batida até que houve um longo rubato, com um acorde que parecia suspender aquele momento, numa glória divina.
Singhirô passou a brilhar com um tom branco-esverdeado e foi levantando voo lentamente. Assim que a névoa de orvalho elétrico que o envolvia foi se atenuando, percebemos que o navio voador havia deixado o que parecia ser uma caixa enorme, logo embaixo de onde havia pousado.
Todos assistiram aquilo quietos, absorvendo as frequências daqueles momentos únicos. Assim que o singhirô e suas luzes desapareceram no horizonte, seguindo para além da Costa dos Alântamos, as pessoas começaram a se aproximar para examinar aquele artefato estranho e único.
Tratava-se de uma caixa enorme, feita de tijolos de tronco de Malúlia. Na escala popular do mundo externo, cada lado media uns vinte metros e era perfeitamente quadrado. Logo notamos que, por entre as fendas dos tijolos, brotavam fortes feixes de luz alaranjada. Assim que os peregrinos tocaram os tijolos, viram que eles eram móveis e não estavam grudados uns aos outros. Assim, descobrimos que em cada tijolo estava gravado, em antigos hieróglifos da Xarilaia, o nome de cada um dos peregrinos que estava em Javanta naquela noite.
Cada peregrino se aproximou da caixa e procurou o tijolo com o seu nome. Assim, as pessoas foram retirando os tijolos, um por vez. Isso acabou revelando uma montanha de cadernos de folhas de Malúlia azul por trás dos tijolos. Para nossa surpresa, os cadernos eram também todos únicos e traziam o nome de cada destinatário gravado em suas capas.
Contudo, os cadernos não eram como os tijolos que celebravam as jornadas dos peregrinos recém-retornados. De fato, descobrimos que havia um caderno para cada um, que havia presenciado o pouso do singhirô, inclusive eu e Inassim.
Cada capa apresentava um desenho complexo e único, repleto de simbolismos que tinham significado pessoal. Era como se quem ou o quê, que forjara os cadernos conhecesse não só os sonhos de cada um de nós, mas nossa trajetória pela vida. Aqueles cadernos únicos eram como pequenos convites para a introspecção criativa e a busca do bem.
Aos poucos, o dono de cada caderno foi identificado e a montanha foi diminuindo. Todo mundo estava participando do desmantelamento daquele artefato místico e misterioso. Maniku e Makulelu ajudavam os outros a removerem os cadernos e a passá-los aos seus novos donos.
Eu estava ali ao lado, me divertindo com a reação das pessoas que iam recebendo os seus cadernos e esperando para ver o que iria acontecer.
Estavam retirando mais uma camada de cadernos quando descobriram que havia uma pequena caixa de Malúlia azul, com imagens holográficas na tampa que seria originalmente o centro da caixa do singhirô. Era como se aquilo fosse uma miniatura da caixa principal, escondida em seu coração. Houve um silêncio súbito seguido de um suspiro coletivo. Daí, um forte tom de expectativa pairou no ar.
Makulelu tentou abrir a caixa mas não conseguiu. Passou, então, o objeto para Maniku. Este virou a caixa, tentando encontrar algum dispositivo ou fechadura, mas não achou nada. Foi então que Makulelu notou algo:
“Veja aqui,” apontou, mostrando dois buracos que estavam nos dois lados da caixa.
Maniku ficou um pouco confuso. Makulelu começou a revisar suas memórias, o que eu podia seguir. O que se passava em sua mente aparecia para mim como uma tela no mundo dos sonhos, onde eu ainda estava imergida. Percebi que, em alguns segundos de meditação, Makulelu ficou com uma imagem de Marigadê segurando o Narizito, plasmada em sua mente. Foi nesse momento que ele me buscou entre as pessoas e olhou diretamente para mim, o que me fez virar em sua direção.
“Lícia, pelo jeito, vamos precisar de você. Se aproxime por favor.”
Andei para o centro da pilha de livros e meus olhos se fixaram nas fendas que flanqueavam a caixa. Entendi o que fazer. Removi os bastões de Lerigen dos meus cabelos e senti o magnetismo do campo dos sonhos se desvanecer. O brilho dos bastões ficou mais forte quando eu me aproximei do artefato. Encaixei os bastões nas fendas que flanqueavam a caixinha.
Com isso, a caixa se abriu. Dentro dela havia mais um caderno de folhas de Malúlia azul. Uma inscrição identificava a destinatária dele: “Maria de Marigadê”. As pessoas que acompanhavam o lento desmontar da caixa formavam uma cerca em volta de mim, Makulelu e Maniku.
Assim que ouviram o nome dela, começaram a fazer um corredor de espaço, abrindo alas até ao leito de Dona Maria, que estava logo ao lado do cais. Eu olhei para Makulelu e ele gesticulou, apontando para que eu levasse a caixa com o caderno para Dona Maria.
Andei, seguindo o caminho aberto pela multidão com a caixa na mão. Dona Maria dormia com uma expressão serena e profunda no rosto. Estava cercada por seus fiéis gatos, que descansavam preguiçosos e bem alimentados.
Obra de Núlia Tyers: “Dona Maria de Marigadê” (2023).
Quando eu cheguei mais perto, a caixa começou a zunir nas minhas mãos. Quando finalmente parei em frente dela, Dona Maria começou a acordar.
E assim tivemos uma noite inesquecível. Foi um momento histórico para Dona Maria que, eventualmente, ao ir se acostumando com a nossa cultura, começou a escrever suas memórias do mundo exterior, comparando-as com nosso jeito de viver em Edonguera. Esse foi o início da carreira de Maria de Marigadê, que acabou virando uma escritora conhecida em Edonguera.
Por mais que nós, edonguerianos, estivéssemos acostumados a viver conscientes do nosso papel no mundo dos sonhos, em comunicação com os avatares dos animais e os de outros seres da criação divina, esse evento, com um verdadeiro singhirô pousando, com um presente tão especial, é uma coisa rara mesmo por aqui.
No final das contas, ninguém ficou sem receber um caderno, das crianças mais jovens aos anciãos mais idosos. Eu senti que aquilo tudo nos ensinava que devemos sempre sonhar e nos expressar, imaginar e forjar no mundo os nossos sonhos. Aqui em Edonguera, sabemos como viver e o que é bom e importante na vida.
Estamos sempre procurando balancear o nosso conhecimento e as realidades tristes do mundo exterior e é esse o nosso maior dilema existencial. Sabemos como viver com uma liberdade que não existe lá fora. No entanto, assumimos uma grande responsabilidade, reconhecendo nosso privilégio e nos arriscando para ajudar as demais pessoas do mundo.