Manhattan

As 09:44h, 3 de novembro, 2023
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                                                                                                                                                            por Jalima Borges

Em 1989, Makulelu, o talentoso artista de Edonguera, embarcou em uma jornada mágica com um propósito especial: visitar Nova York, mais precisamente, Manhattan. Nessa aventura ele estava acompanhado por sua banda de oito músicos. O motivo dessa visita foi um convite do misterioso e influente centro cultural de Edonguera em Nova York.

A viagem até lá não foi uma jornada comum. Partiram da mágica ilha de Edonguera na direção do navio do Capitão Jafro, a bordo do veleiro chamado “Sipá,” guiado pelo capitão Birí, que na época também atuava como percussionista na banda do Makulelu. Em Edonguera, todo mundo canta e toca alguma coisa, o que é completamente natural na cosmovisão local.

Ao pôr do sol do primeiro dia, uma aura especial envolvia a tripulação. Makulelu dedilhava acordes em sua guitarra encantada, Narizito. Enquanto suas notas ecoavam pelas águas do oceano, ele estabeleceu uma conexão única com Jafro, que naquele momento ainda estava em Nova York. Usando seu ukulele feito à mão com a madeira de Alassim da região de Xarilaia, Jafro enviou melodias do firmamento para Makulelu.

Essas melodias continham não apenas a essência da ilha, mas também coordenadas que iluminavam o caminho, apontando na direção do encontro com Miles Davis em Manhattan. Os golfinhos, seres conscientes das mudanças no firmamento e que sentem essas mensagens através de sua alta sensitividade ao som, também notaram a transformação e se aproximaram, oferecendo sua ajuda na viagem.

O papagaio Pilé, a bordo, estava pronto para coordenar com os golfinhos e servir como os olhos no céu durante a estadia da expedição em Manhattan. Pilé, o papagaio, era uma figura misteriosa em si. Sua idade era desconhecida, pois ele havia aparecido em Edonguera quando Makulelu ainda era uma criança. Ao longo dos anos, Pilé se tornou uma das principais figuras entre os papagaios nas várias expedições feitas ao mundo exterior.

A viagem até o navio de Jafro durou três dias. Quando, ao pôr do sol do terceiro dia, o capitão Birí e a tripulação finalmente avistaram a silhueta distante da embarcação de Jafro, os golfinhos que os haviam acompanhado durante toda a viagem se dispersaram com graça, mergulhando sob as ondas.

Uma sensação de expectativa envolveu a tripulação de Makulelu quando Pilé, o papagaio, bateu suas asas e exclamou em entusiasmo, anunciando que haviam encontrado o que procuravam. Rodeados por águas calmas, Makulelu e sua banda trocaram de embarcação, subindo a bordo do navio de Jafro, enquanto o Capitão Birí retornava.

Ainda em alto mar, Jafro os orientou sobre a visita. Era uma missão especial que envolveria contatar Miles Davis, o revolucionário músico. Em Edonguera, a música improvisada era considerada de extrema importância e os registros na biblioteca de Inavô continham gravações, transcrições, versões e histórias relacionadas ao jazz.

O contato com Miles significaria uma troca musical mútua, trazendo influências de ambas as culturas e colocando Edonguera no mapa de uma maneira sutil. Além disso, eles reconheceram a importância de disseminar ideias que poderiam ajudar as pessoas a transcender alguns dos desafios sociais que enfrentavam.

A bordo do navio de Jafro, Makulelu e sua banda também foram informados sobre a vida de Miles, incluindo suas batalhas contra o racismo durante sua juventude. Isso impressionou profundamente os edonguerianos, que notaram a incrível resistência que Miles representava diante de um preconceito profundamente arraigado. Ao mesmo tempo, isso os fez perceber o poder da música em desafiar e desconstruir noções prejudiciais como, por exemplo, a ideia de governo e a noção de política, que os edonguerianos consideravam um teatro lamentável. E assim, sob a luz suave do amanhecer, eles desembarcaram na cidade de Nova York.

Quando a embarcação de Makulelu e sua banda chegou a Nova York, deram com a guarda costeira, personagens rígidos e protocolares, que seguem as formalidades de imigração e alfândega à risca. Ao se aproximarem do posto de imigração, um oficial de uniforme com uma expressão séria os aguardava. Ele olhou para as identidades deles e começou a seguir o protocolo usual. O oficial limpou a garganta e disse com um tom formal: “Por favor, apresentem seus documentos e declarem o motivo de sua visita.”

Makulelu, com um sorriso caloroso, respondeu: “Nós viemos para encontrar Miles Davis e compartilhar nossa música. A música é a linguagem universal que transcende todas as fronteiras. Ela une os corações e as almas das pessoas, independentemente de sua origem.”

O oficial de imigração olhou surpreso e, por um momento, seus olhos revelaram um brilho de curiosidade. Makulelu, notando a mudança, pegou Narizito e começou a dedilhar algumas notas suaves. A melodia ecoou suavemente no ar, como uma brisa refrescante que acalma os corações inquietos.

Jafro, que observava com interesse, acrescentou: “Queremos compartilhar nossa cultura e aprender com os músicos daqui. Nossa intenção é criar uma conexão que transcenda o tempo e o espaço, uma harmonia que desafie qualquer barreira.”

Os outros membros da banda assentiram em apoio. A atmosfera ao redor deles parecia se transformar, como se a música de Makulelu estivesse afastando as preocupações e  as desconfianças do oficial de imigração. Os traços tensos de seu rosto suavizaram enquanto ele escutava a melodia mágica.

Os guardas ao redor, inicialmente rígidos e vigilantes, começaram a balançar suavemente seus corpos, como se fossem embalados pela música. Com os formulários e carimbos esquecidos na mesa, o ambiente parecia encher-se de uma luz acolhedora.

O oficial de imigração, agora com um sorriso caloroso, disse: “Bem, parece que vocês são músicos muito talentosos. Boa sorte em sua busca por Miles Davis. Espero que encontrem o que procuram.”

A energia acolhedora de Makulelu e sua banda havia criado uma conexão que transcendeu as barreiras burocráticas. O posto de imigração, uma vez cheio de formalidades, agora exalava uma atmosfera de amizade e aceitação. Um encanto mágico envolvia a todos, suavizando aquela transição.

Os guardas os deixaram passar com sorrisos calorosos, como se fossem velhos amigos. No entanto, mal sabiam que a influência mágica dos viajantes de Edonguera estava trabalhando em seus inconscientes. Assim que Makulelu e sua banda seguiram seu caminho, os guardas pareciam sonolentos e, antes que percebessem, adormeceram profundamente. Quando acordaram, mal se lembravam do que acontecera. Sentiam-se revigorados, como se tivessem tido um sonho agradável, sem saber que haviam experimentado a magia musical dos viajantes de Edonguera.

Enquanto exploravam a vibrante cidade, os músicos de Edonguera seguiram Pilé, o papagaio sagaz que era mestre em detectar as energias que o grupo buscava. As ruas de Manhattan estavam vivas com o som do jazz e Pilé, com sua incrível capacidade de compreender tanto a música de Miles Davis como lembrar da sua voz, os guiou até o lendário Blue Note.

Ao entrarem no clube, a banda de Edonguera, vestindo trajes únicos que destacavam sua origem desconhecida, chamou a atenção. Eles portavam instrumentos que pareciam de outra era, o que aguçou a curiosidade dos presentes. No palco, um saxofonista notável, Wayne Shorter, liderava seu conjunto com uma paixão inconfundível.

O saxofonista percebeu a presença do grupo de viajantes e notou que eles se envolviam profundamente na música. Respondiam aos ritmos de uma maneira que despertou sua curiosidade. Após o término do set, Wayne se aproximou do microfone, sorrindo para a plateia.

“Bem, pessoal, acho que já é hora de explorarmos algumas possibilidades aqui. Concluímos nosso set regular. Então, se alguém quiser ir para casa, fique à vontade. Mas para aqueles que desejam ouvir algo mais exploratório, fiquem por perto. Gostaríamos de convidar alguns de vocês para o palco. Algum músico na plateia?”

Ele riu, ciente de que havia muitos músicos na audiência. Um breve silêncio pairou sobre a sala, enquanto Wayne observava atentamente a multidão.

“Notamos que temos alguns convidados especiais aqui esta noite, mas não fazemos ideia de quem eles são.”

Makulelu e os membros de sua banda, sentindo o que estava prestes a acontecer, trocaram olhares animados. Pilé permanecia silencioso e ordeiro no ombro de Makulelu, encantando todos na sala.

Wayne apontou para Makulelu.

“Você parece um músico. Gostaria de juntar-se a nós?”

Makulelu aceitou o convite e subiu ao palco, com Pilé ainda em seu ombro e com Narizito na mão. Com confiança e concentração, Makulelu começou a entoar uma melodia única e a banda de Edonguera se uniu a ele, com cantos e percussão. Pilé começou a cantar a melodia do tema da música “Tutu,” do álbum recente de Miles e Makulelu explorou improvisações fascinantes com sua voz.

De repente, um som inconfundível ecoou do fundo do corredor. Era Miles Davis, caminhando em direção ao palco com seu icônico trompete. O que se desenrolou naquele momento foi algo inédito, uma improvisação única, na qual Miles Davis, Wayne Shorter, Pilé e Makulelu se conectaram através da música, criando algo que nunca havia sido registrado e que ninguém jamais testemunhara. A platéia mergulhou em um estado de transe musical.

A jam session continuou noite afora. Quando acabou, Miles convidou o grupo de Edonguera para passar alguns dias tocando no estúdio do seu apartamento na 5ª Avenida, onde também poderiam se alojar.

E assim foi. Durante três dias consecutivos, Makulelu, Miles e Pilé colaboraram intensamente em uma nova composição. Enquanto Makulelu e Miles revezavam-se no piano, Pilé trazia valiosas melodias e ideias musicais de suas explorações pelos céus da cidade.

A fusão de talento entre Makulelu, Pilé e Miles gerou arranjos vibrantes e cheios de alegria, tornando aquela experiência ainda mais especial. Miles ficou impressionado com a harmoniosa colaboração entre Makulelu e seu companheiro alado, Pilé. Parte da missão era mostrar o lado musical e místico dos bichos, suas línguas, sons e conhecimentos especiais, que foram sempre respeitados em Edonguera.

Nesses dias, outros músicos se juntaram às jam sessions no estúdio do Miles. O legado dessa colaboração ficou registrado em fotografias e quadros inspirados por esse encontro histórico. Alguns deles mostram Makulelu ao lado de Miles Davis: um gênio do jazz ao lado músico lendário de Edonguera.

O encontro improvável entre esses músicos de mundos diferentes desencadeou uma jornada musical única, que transcendeu barreiras culturais e mostrou como a música universal pode unir almas apaixonadas pela arte.

No caminho de volta à Edonguera, Makulelu arranjou a música “Manhattan” com seu grupo e a apresentou em vários festivais locais. Finalmente, Makulelu lançou uma gravação de estúdio em 2020, destinada ao mundo exterior. Essa música e sua história ecoam nos corações dos habitantes de Edonguera, onde é celebrado o encontro desses artistas, eternizando um momento único em Manhattan e que apenas os habitantes da nossa ilha poderiam recordar.

Ouça “Manhattan” de Makulelu: