Entre Dois Mundos: A Canção Dentro de Mim

As 12:20h, 16 de novembro, 2023
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                                                                                                                                                          por Jalima Borges

“Inside of Me” é uma música de Makulelu que encapsula uma saudade profunda, que ele vivenciou durante um período de separação de seus entes queridos, em uma peregrinação à caminho do norte da Finlândia, em agosto de 1997.

A composição lida com as complexidades da saudade e as dores da nostalgia que ecoaram no coração de Makulelu. As camadas de emoção se entrelaçam nesta melodia e misturam a alegria com a saudade e com esperança, em um testemunho de como a música, a dança, e a poesia refletem a alma criativa.

Algumas expressões que Makulelu usa nessa canção já são conhecidas em Edonguera. Por exemplo, “alira pone mira” encapsula as emoções que se transformam em realidade através da música e dos arranjos musicais, abrindo um mundo novo aos ouvintes que têm ouvidos para entender.

“Alira” é uma das palavras que apontam para a música interior que pulsa em nossos corações e em nossa alma, um fenômeno bem familiar aos mestres de Yopá.

“Pone mira,” claro, é o poder da intenção, da objetividade, do foco ou da produção espontânea que vem daquela música interior que nunca cala.

O termo “lorenstand” vem do poder das canções e histórias para nos elevar, nos fazendo levitar em direção ao firmamento, fazendo a conexão electro-etérica com os diversos seres que vivem além do firmamento, em planos superiores e em outras dimensões.

Este artigo é o resultado de uma compilação de relatos em primeira mão, coletados ao longo de uma década de estreito envolvimento com Makulelu e seu grupo. Eu compilei e sumarizei as várias histórias contadas por testemunhas. No que segue, proporcionamos uma visão da origem e ressonância emocional desta peça musical dentro da obra maior makuleliana.

Em meados de 1995, Makulelu começou a estudar a trilha da caravana Burismaliana, uma lendária peregrinação Edongueriana para o Norte. Iniciada em 1704 e liderada por Kamilcar Burismalion, foi uma jornada sagrada à busca de conhecimento e novas terras.

Sabemos que a peregrinação ancorou seus barcos perto de Siracusa, na Sicília, e depois seguiu pelo litoral italiano até perto de Trieste, onde começaram sua travessia dos Alpes, chegando aos arredores de Viena em 1708.

Neste ponto, a caravana se dividiu em dois grupos. Um seguiu para a São Petersburgo, enquanto o outro foi para Tallinn, cruzando de barco para Helsinque antes de seguir para o Norte. O trajeto era marcado pela construção de santuários e a fundação de pequenas vilas, cada qual com sua significância. Mas, muitos ainda não foram encontrados.

As razões por trás da divisão da caravana Burismaliana permanecem envoltas em mistério. Especula-se sobre incertezas relacionadas ao próximo posto e sua relação com as estrelas no firmamento; talvez houvesse outra trilha a seguir ou uma missão de assistência que exigisse a mudança de rota e reconfiguração. As pistas conhecidas em Edonguera só notavam a divisão do grupo sem muita elaboração. Assim como no caso de outras caravanas, como a dos Xarilaus, nenhum dos dois grupos jamais retornou.

A música “Inside of Me” surgiu das experiências que vou relatar agora. Seguindo a costa do Adriático, a expedição chegou ao Norte da Itália sem problemas. Vários artefatos foram identificados, acrescentando novas informações ao nosso conhecimento sobre a caravana Burismaliana.

O inverno se aproximava quando começaram a seguir em direção aos Alpes. O grupo decidiu não se aventurar na Rússia devido à questões políticas da época, mas evitou as estradas principais, preferindo atravessar os Alpes seguindo antigas rotas edonguerianas desconhecidas até mesmo para os habitantes locais. Usaram cantos do firmamento para iluminar essas antigas rotas.

Certa noite, estavam ao pé de uma montanha pedregosa, perto da fronteira da Itália com a Áustria. Fazia muito frio, e a lua pairava sobre o acampamento. Todos dormiam. Makulelu estava dentro de sua barraca, sentindo falta de sua família e de seus amigos de Edonguera. Aos poucos, esse sentimento se tornava cada vez mais intenso.

Um raio de luz da lua entrou na barraca por cima, pousando em Narizito, o violão de Makulelu, que estava no canto da barraca. Narizito começou a zunir e a brilhar em um azul elétrico suave. Parecia que estava sendo alimentado pela luz da lua e pela proximidade com o céu.

Makulelu não resistiu e se sentiu atraído ao instrumento encantado. Quando Makulelu o tocou, o violão começou a zumbir. Com uma luz rosa, pulsava como um transformador elétrico. Quando Makulelu finalmente conseguiu segurar o Narizito, o mundo ao seu redor começou a desaparecer.

Já não via as outras barracas no acampamento: tudo havia se dissipado em uma névoa, enquanto o mundo etéreo em todos os seus detalhes parecia se desdobrar em realidade. Não estava mais escuro e a luz da lua parecia tão forte quanto a do sol. O luz que saia do violão iluminou a costa da montanha.

Um caminho para o alto apareceu de repente, brilhando com uma névoa elétrica. Makulelu não sentia frio e não conseguia se virar. Uma forte luz rosa bem acima de sua cabeça, no firmamento, tornou-se maior e começou a brilhar através de ciclos de várias cores.

Logo, ele perdeu todo o sentido de onde estava o acampamento. Viu uma escada iluminando a montanha. Olhando para cima, notou que o caminho levava ao pico, onde uma luz azul suave brilhava com um zumbido, um som atraente.

Em uma hora, Makulelu, com Narizito nas mãos, subiu aquela longa escadaria, sem sentir fadiga em seus membros. Aquilo parecia um sonho. No entanto, quando fechava os olhos, as linhas do mundo físico voltavam à vista. Foi assim que conseguiu se virar e notar quão longe já estava do acampamento, que agora era apenas um ponto distante.

No topo da montanha, havia uma caverna voltada para o leste. Makulelu se aproximou. Na entrada da caverna, um homem vestindo pele de cervo selvagem estava sentado, aparentemente meditando.

Esse homem encarava o firmamento e a luz da lua parecia mover uma energia dentro dele. Seu coração e cabeça brilhavam com um azul suave, uma luz calorosa formada pelos harmônicos que surgiam de seu canto mântrico e dos reflexos do som nas paredes das montanhas.

À medida em que Makulelu se aproximava daquela figura intrigante, Narizito começava a tremer mais. Quando chegou bem perto, o violão começou a zumbir como um escaravelho decolando e estava quase voando de sua mão.

Makulelu deu um passo para trás e tentou segurar Narizito. Pensou que o instrumento estava entortando e que logo se quebraria ao meio.

O homem abriu os olhos e estendeu um braço. Imediatamente, Narizito escapou do punho de Makulelu e voou em sua direção, pousando na palma de sua mão.

Makulelu tentou falar, mas palavras convencionais não saíam de sua boca. Quando tentava se expressar, Narizito zumbia e suas palavras ficavam mudas.

O homem o encarou, sereno e sério. Seus olhos brilhavam com uma luz calorosa. Makulelu percebeu que era um momento extraordinário. Ficou quieto com seus sentimentos, absorvendo tudo.

“Posso ouvir seus pensamentos e sentir sua saudade, meu velho amigo”, disse o homem, sem se apresentar.

Makulelu ficou lá, em pé, parado e perplexo.

O homem começou a dedilhar Narizito, cujo som estava, de alguma maneira, amplificado. Aquilo começou a ecoar na tela da visão interior de Makulelu, formando paisagens vivas de sonho ao seu redor.

Makulelu não conhecia palavras que poderiam descrever tudo o que estava acontecendo. Aquelas emoções, também, não sabia traduzir. Notou que, à medida que a música o tocava, sentiu levitar. Era como se um travesseiro o suspendesse.

Quando o homem começou a cantar, Makulelu, atônito, viu centenas de pássaros sair de sua garganta, voando para o mundo.

“É assim que inspiramos as pessoas com melodias que as aproximam”, explicou o homem.

Cada pássaro voou com a missão de inspirar um sonhador no mundo, trazendo conexão, beleza e enchendo seus corações de amor e alegria.

Em um instante, Makulelu foi transportado nas asas desses pássaros. Visitou várias pessoas que estavam sonhando e viu o alívio que os pássaros musicais os proporcionaram. Com o brilho renovado de esperança em seus olhos, poderiam lidar melhor com as dificuldades que enfrentavam.

Mesmo sem conseguir falar, Makulelu podia cantar e seguir as melodias que estavam sendo derramadas no mundo dos sonhos.

“Agora você entende?”, perguntou o homem.

Makulelu viajou nessas melodias e sentiu como se estivesse em vários lugares ao mesmo tempo, com os pássaros, com as harmonias, no canto e no mundo físico, mesmo que parecesse um cenário cinza ao seu redor, superposto no plano etéreo para o qual fora levado.

“Não quero sair daqui”, pensou Makulelu.

“Você tem que voltar”, declarou o homem. “Você só tem permissão para ver e ouvir essas melodias para o benefício de seu povo e para espalhar nossa mensagem de paz e conhecimento.”

“Mas quem é você?” perguntou Makulelu, recuperando lentamente seus sentidos normais e a capacidade de usar sua voz física.

“Não se preocupe, essa visão está agora dentro de você”, disse o homem.

“Dentro de mim?” Makulelu se perguntou.

“Sim e dentro de todos. Alguns simplesmente não ouvem, fecharam os olhos e os ouvidos. Temos que abrir seus corações e não deixar que fiquem frios e percam os sentimentos com as coisas que ocorrem no mundo. A maioria deles não terá a oportunidade de visitar Edonguera nesta vida e está presa pensando que o mundo deles é tudo o que há… Alguns perdem toda a esperança”, disse ele a Makulelu.

“Onde estou, que lugar é este?” Makulelu perguntou.

“Este é um santuário oculto, construído pelos Burismalianos que ficaram aqui. Esta é apenas a entrada e todas as estruturas estão dentro da montanha. Vivemos aqui sem sermos detectados, devido ao nosso uso de madeiras edonguerianas nativas e encantamentos. Só podemos ser vistos por aqueles que desejamos ver.”

“Estou em uma expedição, indo para o Norte…”. Makulelu tentou explicar.

“Eu sei quem você é, pois fui eu mesmo que o trouxe aqui, te guiando através deste instrumento de Linho Alato de Bariné,” explicou, referindo-se a Narizito.

Mudando de tom, continuou:

“Você não está indo mais para o Norte. Você deve voltar imediatamente à Edonguera e transformar essa experiência em uma canção. Este é o fim da sua jornada desta vez. O Norte está cheio de surpresas e muitas pessoas não retornam. Ainda não é a sua hora. Há muito trabalho a ser feito.”

“Quem é você?” Makulelu perguntou novamente, “Você é deste mundo?”

“Eu moro aqui desde 1710, depois que começamos a construir este assentamento, que chamamos de Jayandak em nosso dialeto atual. Eu sou Alaton Burismaliano. Este corpo é uma das formas que uso para me manifestar no mundo.”

Enquanto ele falava, o mundo físico começava a reaparecer, como se o encanto que revelasse Jayandak estivesse gradualmente perdendo seu efeito. A lua estava prestes a se pôr e o sol em breve surgiria no horizonte.

“Agora chega. Você tem que voltar ao mundo físico mais denso e retornar imediatamente a Edonguera”, disse a Makulelu.

“Mas vim até aqui em cima, e não posso nem entrar em Jayandak?”

“Talvez em alguma outra oportunidade. Muitos deveres ainda te esperam e não podemos te dar acesso agora. Isso é tudo que posso compartilhar com você neste momento.”

“Você está sozinho aqui?”

“Claro que não, há muitos de nós.”

O mundo físico começou a se tornar mais dominante, e, pela primeira vez, Makulelu sentiu o frio extremo daquelas altitudes e seu corpo começou a pesar.

“Como vou conseguir voltar ao acampamento? Estou perdendo a visão desse sonho, mas estou cansado.”

“Não se preocupe, assim que eu desaparecer, meu amigo Harkis o guiará no caminho de volta”, respondeu Alaton.

Makulelu começou a se sentir bastante cansado. Alaton devolveu Narizito, que parecia ter sido carregado com novas melodias mágicas.

Makulelu sentiu aquela força entrar em seu coração e seus fluxos e movimentos melódicos o colocaram de volta em um estado onírico.

Alaton começou a desaparecer e, da névoa que deixou para trás, surgiu um grande tigre da montanha, cinzento e peludo, equipado com uma sela desconhecida. Makulelu ficou intrigado, mas não conseguiu reagir, tamanha a fadiga que sentia. Harkis, o felino, se aproximou de Makulelu gentilmente, abaixou o seu pescoço e Makulelu subiu na sela.

Makulelu então ouviu uma voz manifestar-se em sua mente: “Agora descanse, meu amigo, conhecemos o caminho de volta para o seu acampamento.” Percebeu que a voz vinha do tigre.

Makulelu respirou fundo e relaxou. Sentindo-se seguro e confortável, logo adormeceu. A música ainda ecoava em sua mente, com novas harmonias e melodias: ele foi viajando nas combinações possíveis, e nas composições que se formavam. De repente, ouviu um assobio de águia dos guias da caravana de Wengler, que o procuravam.

No acampamento, na noite anterior, haviam avistado uma luz encantada se manifestando  durante a madrugada e depois notaram que Makulelu subira pela montanha naquela luz etérea. Arreslau Wengler foi logo informado do ocorrido. Ele foi falar com Janaia Gorles imediatamente para decidir o que fazer. Ela resolveu liderar uma sessão de canto, para saber mais sobre o evento. Ela relatou aquilo que pôde ver, seguindo Makulelu em espírito.

Quando Makulelu se aproximou do cume, Janaia parou de cantar e anunciou que ele estaria de volta pela manhã e, também,  que Makulelu havia encontrado uma colônia edongueriana. Ao amanhecer, os guias e vigias notaram um felino maciço descendo pela face leste da montanha. Enviaram grupos de busca, liderados pelo próprio Arreslau Wengler.

Makulelu ainda sonhava, dormindo na grama, quando sentiu uma mão aquecer seus ombros. Era Wengler, com um sorriso caloroso.

“É bom ver que você está bem, meu irmão,” falou, oferecendo uma mão.

Makulelu sorriu.

“Sabemos já um pouco do que aconteceu,” disser Wengler.

“Onde estamos?”, perguntou Makulelu.

“Ainda estamos na Áustria moderna. Vamos continuar seguindo ao Norte.”

“Não posso continuar, preciso voltar para Edonguera,” disse Makulelu.

“Sabemos e já organizamos o teu retorno. Estamos apenas esperando a chegada do papagaio Pilé. Janaia nos revelou ontem à noite que você recebeu a tarefa de escrever uma canção sobre o que está dentro de você depois dessa experiência”, explicou Wengler.

“Sim, vou chamá-la de Inside of Me,” Makulelu declarou.

“Deixe a criatividade fluir, vamos cuidar de todos os outros detalhes. Entramos em contato com Pilé na noite passada através do firmamento”, continuou Wengler, ” E, por acaso, ele estava em Edonguera. Deverá estar aqui em um ou dois dias. Ele será seu guia de volta para a Itália. O Capitão Birí vai te buscar com o Sipá no porto próximo a Gênova, em um local sob controle edongueriano.”

Makulelu manteve sua mente e sua alma na tarefa, e, quando chegou a Edonguera, um mês depois, a música estava pronta para ser gravada.

 

Ouça ‘Inside of Me’: