por Orson Lingo
Em meio à beleza etérea da praia de Lengália, onde as ondas dançam ao ritmo da história de Edonguera, tive a oportunidade de conversar com o lendário músico e artista Makulelu. Resolvi ir logo cedo para aproveitar o dia e rever meus amigos. Logo que cheguei, fiquei sabendo que Makulelu e seu grupo se apresentariam depois da feira, durante o pôr do sol. Já haviam até preparado o palco na praia. Fui procurá-lo, passeando pelas barracas e observando o movimento.
A feira de Lengália se agitava ao meu redor, com especiarias, vários tipos de frutas, artesanato e artes de todas as partes habitadas do nosso arquipélago. A culinária edongueriana estava bem representada. Havia uma grande seleção de iguarias locais, frutas como a pêra d’edonguera, o macupixe e o juruiú, entre tantas delicadezas especiais. Todos se prepararam para as festividades.
Havia muito movimento e entusiasmo no ar. Só fui encontrar Makulelu depois que um momento de calma começou a se espalhar, diminuindo a intensidade das atividades na praia. Ele estava conversando com os pescadores junto com o baixista Maniku. Assim que me avistaram, acenaram para que eu me aproximasse.
Liguei o meu gravador e fomos direto ao assunto. Acabamos conversando sobre as nuances da inspiração transcendental em Edonguera e o propósito do seu trabalho. Segue aqui uma transcrição editada da nossa conversa.
“Primeiramente, muito obrigado, Makulelu, pela gentileza de me receber durante esse festival importante, neste lugar que liga a nossa mitologia à nossa história.”
“O prazer é meu, querido Orson.”
“E como andam as coisas?”
“Estou muito bem. Vou mantendo contato com o povo e seguindo, sentindo o meu caminho. No final das contas, é sempre Edonguera, a nossa sociedade, a nossa cultura e o nosso povo, além das experiências com os contrastes do mundo exterior que me inspiram a criar. Mesmo em muitas viagens e peregrinações pelo mundo afora, é a nossa terra que é a fundação que nos mantem conectados com a natureza.”
“Verdade. Com tantas artes que cultivamos em Edonguera, e tantas peregrinações pelo mundo, a nossa história se tornou tão complexa e rica em detalhes. Crescendo aqui, como sabes bem, Makulelu, somos todos, em algum momento chamados para seguir um caminho particular ligado às nossas aptidões. Como é que a música veio te chamar?”
“Desde minha infância, uma força me impulsionava a cantar, observar, escrever, a dar um jeito de expressar o que eu via e sentia. Mas era tudo muito natural. Nossa ligação com os animais, no meu caso, o papagaio Pilé foi muito importante. Me deu uma sensibilidade mais profunda sobre os enigmas da vida e o poder da criação. Só percebemos que vivemos em um lugar extraordinário, quando conhecemos o mundo externo. As injustiças e a pobreza que vemos por lá nos mostra o que é a indignação, pois sabemos que são males evitáveis.”
“E é assim que, aos poucos, vamos fazendo o bem.”
“Pois é, Orson. Mas não é fácil. Muitos não retornam, vários se perdem. Alguns são reencontrados. Enfrentei situações difíceis várias vezes. Mas o conhecimento das nossas tradições e cultura ancestrais, o poder da música e o elo com os outros seres da criação sempre me salvaram. O meu jeito de lidar com o que fui passando, observando, registrando e fazendo, tanto aqui quanto no mundo dos sonhos, é a música. Cada canção tem as suas peculiaridades, seus códigos, suas lições, e está ligada com memórias e sentimentos. Muitas contém ressonâncias astrais, códigos e fórmulas que fluem das vibrações da terra, das estrelas e dos astros do firmamento. O véu de Edonguera, tanto aqui quanto no mundo exterior, forma um elo entre todos nós.”
“Sim, sabemos como nos conectar ao véu e ao firmamento, mas…”
“Não sabemos o que é o véu.”
“Exato. Estamos ainda investigando.”
“Certas coisas não se pode entender completamente, nem descrever.”
“Aos poucos vamos caminhando… Então, Makulelu, você poderia falar um pouco mais sobre alguma música sua e como foi inspirada.”
“Claro. Deixe-me ver. Por exemplo, tem um dos nossos hinos tradicionais, que muitos chamam de Papare Tese. Fiz uma versão recentemente. Esse tema me balança desde pequeno. Eu visitava muito a chácara dos meus avós com os meus primos, que ficava nas colinas entre Lengália e Inavô.”
“Um belo dia, os anciãos que habitavam as chácaras da floresta montaram um coro no teatro, onde as pessoas se reuniam sempre no final da tarde. Montaram uma banda com os jovens locais que se dedicavam à música. Todo mundo se conhecia e eu tinha muitos familiares ali. Até o Maniku também estava lá. Naquele tempo eu nem imaginava que um dia eu produziria alguma coisa, que aprenderia a conduzir uma orquestra ou um coral, o que hoje é a minha vida.”
“Aquela canção entusiasmava todo mundo. Eu cantei muito e senti que o meu caminho era mesmo pela música. Depois, quando voltamos à chácara, na mesma noite, eu não conseguia dormir. Quando eu fechava os olhos, luzes que soavam como notas musicais dançavam na minha mente, subindo, descendo e brilhando. Naquele momento, percebi que o próximo passo seria transferir o meu canto para instrumentos musicais.”
“Depois disso, os seres do mundo dos sonhos começaram a surgir para falar comigo. Eram avatares da natureza, dos animais e das plantas. Cantavam, me mostravam e explicavam as várias paisagens e caminhos criativos que se espalham pelo mundo dos sonhos.”
“Aos poucos, fui aprendendo cada vez mais sobre a nossa história no mundo exterior. Uma forte vontade de viajar para lá foi surgindo. Eu queria desvendar os mistérios das nossas caravanas e contribuir com o meu trabalho, que eu queria que viesse espontaneamente.”
“Tenho muita fé que podemos ainda, com base nos moldes de Edonguera, ajudar de alguma maneira o mundo além do véu, onde os problemas parecem se multiplicar.”
“Eu concordo, Makulelu. Temos aqui uma fonte única de criatividade, liberdade intelectual e cooperação que só existiu por lá no passado remoto, antes do surgimento do estado moderno. Hoje perderam o contato com esse conhecimento.”
“Eu também acho, Orson. Sabemos que não podemos privar o mundo da nossa ajuda. Ainda mais com tudo que recebemos de bom na nossa vida aqui, onde palavras como ‘custo’ nem passam na nossa cabeça.”
“É uma responsabilidade enorme que muitos de nós, como você, Makulelu, escolhem compartilhar. Mesmo que as pessoas do mundo exterior não tenham como reter a verdade além do véu, resolvemos começar a publicar o nosso material por lá.”
“E isso é importante para nós todos, Orson. A ficção parece ser mais forte que a realidade na mente das pessoas do mundo exterior. Por isso, eu tento adoçar o amargor da verdade na minha música.”
“Fale um pouco mais sobre isso.”
“Pois é. A boa música ganha profundidade com o tempo. Ela forma elos entre as pessoas, suas memórias e sentimentos. Ela alivia as frustrações da vida. É como uma válvula de escape que nos coloca em contato com o mundo dos sonhos. No mundo exterior, onde o sofrimento é mais comum, muitos se perdem e se escondem na música, tal o seu poder de impressionar, impulsionar e aliviar. Por outro lado, a comercialização excessiva por muitos anos vem corrompendo a música popular, tornando-a cada vez mais superficial.”
“Esse é um problema muito grave, Makulelu.”
“E afeta a educação e o conhecimento histórico-musical geral. Como temos tudo que é produzido no mundo registrado em Edonguera, entramos à fundo nos estilos diferentes de tantos compositores e artistas, muitos que até vieram para cá. Às vezes, esquecemos que o mundo continua produzindo muita música.”
“E aí vem o contraste…”
“Não é brincadeira, não, Orson. Mas mesmo o alívio da boa música tem um teor temporário por lá, pois não resolve os problemas que o sistema proporciona. Acontece muito de pessoas que se dedicam à boa música ficarem presas ao sistema comercial só para poder sobreviver.”
“Isso é tão fora do nosso padrão, Makulelu. Precisamos de uma paciência incrível.”
“E tem mais, Orson. Aqui, onde trabalhamos juntos pela abundância de todos, não conhecemos a violência ou a pobreza. Nós não temos um ‘sistema’ mas, simplesmente, uns aos outros. Falam muito da felicidade no mundo externo. E vendem um monte de produtos forjados especialmente para os infelizes. Aqui, a felicidade nem é um ideal que buscamos conquistar, é a fundação mais básica da nossa existência. Com isso dentro de nós, desenvolvemos a coragem de nos arriscar no mundo exterior.”
“Por aqui, enquanto estudamos, dançamos e cantamos, vamos crescendo e conhecendo a verdade, cada um ao seu próprio passo. Por lá, o sistema força muita gente a se revoltar com o destino. Como você lida com esse conhecimento, Makulelu?”
“Infelizmente, existem muitos lugares no mundo onde o sofrimento é totalmente absurdo mesmo com referência aos padrões de lá. A miséria é difícil de descrever. Onde a ganância e o egoísmo dominam, as pessoas viram números, estatísticas e são tratadas como coisas na busca do lucro.”
“E olha, Orson: eu já estive em muitas cidades mal planejadas e sujas, cercadas de uma natureza maravilhosa, formando um estranho contraste que assola a nossa sensibilidade edongueriana.”
“Sim, Makulelu, é uma pena imensa, uma total falta de aproveitamento. Não há tempo, espaço e recursos para a cooperação, se não for em nome do lucro.”
“Em Edonguera, estamos acostumados com construções quase perenes. Eu gosto muito de arquitetura, que tem muito a ver com a música. Desde a revolução criativa-arquitetônica de 1947, com o trabalho do mestre Barílio Formes e a arquiteta e paisagista Gauda Amaluk, nossas construções comunitárias aumentaram a produção de plantas, vegetais e frutas. Passamos a criar obras com uma estática moderna e que se encaixam perfeitamente no ambiente e no nosso jeito de ser. Isso, com a ajuda dos nossos peregrinos e grupos espalhados pelo mundo, serviu de inspiração para outros construtores e arquitetos por lá. O problema é que, como sempre, a ganância impediu o progresso dessa onda. Por mais barato que seja produzir comida para todos, continuam controlando a produção de alimentos e fazendo com que os preços aumentem.”
Centro Comunitário de Lengália. Arquiteta: Gauda Amaluk, (1949).
“Verdade, Makulelu. Vivem inventando maneiras de vender coisas inúteis e muitas coisas que fazem mal.”
“Não só para mim, mas também para muitos outros artistas e peregrinos edonguerianos, o mundo externo, com seus costumes insensatos e quase incompreensíveis, é uma grande fonte de inspiração. Não precisamos nem viajar muito para constatar que o resto do mundo também precisa de Edonguera. O nosso sucesso é muito sutil, mas é constante. Vamos mesmo sair por aí, ajudando as pessoas, uma de cada vez, por mais devagar que isso seja, Orson.”
“Não existe atalho para esse tipo de trabalho, Makulelu.”
“Exato, daí a importância da constância, Orson. É no dia a dia, em cada curva da estrada, em cada chegada e partida, naquele movimento constante, do passo à passo, que as coisas boas acontecem. Sempre que volto de algum lugar no mundo externo, busco me limpar, sossegar minha mente e meus sonhos.”
“Eu também acho, Makulelu, que não podemos fazer tudo sozinhos. Quase nunca sabemos o que vamos encontrar por caminhos novos.”
“Isso. E assim, Orson, agindo sempre com o bem estar de todas as criaturas em mente, as oportunidades para fazer o bem nos são proporcionadas.”
Ficamos ambos em silêncio, contemplando os sons e visuais de Lengália. Duplas de pessoas com golfinhos jogavam vôlei aquático ali perto e muitas risadas permeavam o ar. Os golfinhos são muito bons na defesa, mas também generosos em passar a bola para as pessoas, cuja agilidade na água é muito limitada. Makulelu girou com os braços abertos, e percebi que estava já se orientando para o palco. Continuei quieto. Ele respirou fundo e continuou, olhando para o céu:
“Não tem nada melhor do que poder estar no lugar certo na hora certa para ajudar alguém de improviso. São eventos que nos mostram a mão de Deus. Sabe, Orson, fui também ajudado no mundo externo, em momentos muito difíceis, espontaneamente, por pessoas de lá.”
“Eles estão cheios de teorias no mundo externo, né Makulelu?, que postulam que a natureza humana é corrupta. A verdade é o contrário: as pessoas só querem o bem, mas o sistema corrompe.”
“Claro, Orson, as pessoas querem mesmo o que há de bom, cuidar de suas filhas, de seus filhos e de suas famílias. Conheci pessoas incríveis lá fora. Me inspiram muito. Trouxemos recentemente a Dona Maria de Marigadê e ela já está entrosada por aqui.”
“Sim, eu estava em Javanta, também entre os peregrinos. Depois tive a chance de conhecê-la. Ela me contou alguns de seus casos.”
“Foi muito interessante, Orson, tudo que se passou naquelas semanas, depois do nosso retorno.”
“Sim, eu li a peça da Lícia, o que é um assunto complexo e para outra hora. Makulelu, muito obrigado pela atenção, meu caro.”
“O prazer é meu, Orson.”