Edonguera: a Canção da Conexão

As 13:47h, 18 de novembro, 2023
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                                                                                                                                                        por Jalima Borges

No universo musical de Makulelu, a canção “Edonguera” destaca-se como uma expressão única da profunda ligação entre os habitantes da ilha e as forças místicas que a envolve. Esta composição singular não apenas celebra a vida em Edonguera, mas tem suas raízes em um evento extraordinário que moldou a trajetória do músico.

Em 1994, durante uma expedição em direção à África do Sul, Makulelu e seus companheiros enfrentaram uma tempestade violenta perto da Mauritânia, resultando em um naufrágio que deixou vidas perdidas. A canção que ele simplesmente chamou de “Edonguera” nasceu do eco musical daquela experiência, em que a força espiritual venceu a adversidade. Esta é a história por trás da melodia que se tornou uma prece para a união, a transcendência e a paz.

A música “Edonguera” celebra a vida na ilha e serve de evocação aos deuses e seres etéreos que vigiam nossas terras e o véu que as protegem. Portanto, os termos que abrem a canção são evocações que visam a afinação com frequências celestes. De acordo com a crença dos antigos, o canto toca o firmamento e faz uma ligação com a força por trás do véu, assim amplificando as emoções e intenções da vibração particular, conectando os participantes no campo do mundo dos sonhos.

A canção começa com as palavras “sakani marigadê”, que são uma espécie de convite para abrir os céus por meio da meditação musical. “Sakani” se refere aos três estágios de projeção espiritual e ligação, “sa” (dentro), “ka” (sair da pele), e “ni” (expansão universal). “Marigadê” se refere aos oceanos de águas que envolvem o mundo (mariga), o que aponta à importância da água como fluido universal da vida (dê).

“Tuk tiram dek tuk tiram” descreve os ritmos e o movimento da alma enquanto busca se conectar com o céu e utilizar a sua energia elétrico-etérica. Em seguida, o “deg-enegê djiguedê Edonguera” evoca o poder protetor que abrange todos os nativos da ilha, incluindo as entidades celestiais que cuidam dela. São palavras usadas com muito cuidado, devido ao poder que evocam.

Esses são todos termos bem conhecidos dos estudiosos e sábios edonguerianos e já foram utilizados nos mais diversos contextos artísticos.

Dado este contexto, vamos agora relatar a experiência vivida por Makulelu em 1994, que inspirou essa versão da canção “Edonguera”.

Makulelu estava navegando em um grande barco à vela em que peregrinos edonguerianos eram passageiros disfarçados de pessoas do mundo exterior. O capitão Charles Guerdinton, nativo da Irlanda do Norte, comandava o navio.

Seguiam em direção à África do Sul. Perto da costa da Mauritânia, uma tempestade súbita e um vendaval violento ameaçaram o barco e a vida de todos a bordo.

O mar tempestuoso, com ondas tão altas e perigosas, fazia o barco parecer ter encolhido. Ele começava a afundar, com um buraco no casco. Infelizmente, em menos de uma hora, vários marinheiros e passageiros perderiam a vida.

Makulelu percebeu que o barco logo não resistiria à violência das ondas. A única esperança naquele momento, pensou, seria enviar sinais de socorro para os cetáceos mais próximos usando um canto mântrico ancestral e consumindo uma quantidade da alga Hêra, que sempre trazia consigo em viagens pelo mar. Em seu sistema, Hêra funcionaria como um farol para os golfinhos, que são sensíveis à sua ressonância. Respirou fundo para se afinar ao modo de conexão espiritual, começou a mastigar uma folha de Hêra e pegou Narizito: entoou os mantras sem perder um segundo.

Logo em seguida, um grupo de cetáceos, liderado pelo golfinho edongueriano Marlim, ouviu o chamado e enviou um sinal informando que estavam a caminho. Makulelu ouviu a resposta de Marlim e sentiu que já estavam por perto. Ele conhecia bem aquele dialeto dos golfinhos e começou a acalmar seus amigos, no meio ao caos da tempestade e do naufrágio.

“Preparem-se todos e me sigam. Marlim está a caminho. Agarrem-se em algo que boie e venham comigo!”

Logo depois, Marlim e os outros golfinhos acompanhavam o barco por baixo d’água. Não podiam ajudar todo mundo ao mesmo tempo, mas tentariam salvar o maior número de pessoas possível. A tempestade devastara o barco de tal forma que muitas pessoas caíram no mar com o colapso da embarcação.

Sentindo o momento certo, Makulelu pulou no mar, seguido dos colegas edonguerianos. Makulelu subiu nas costas de Marlim e juntos com ouros golfinhos, carregaram os náufragos para os quatro botes que haviam restado intactos.

A tempestade continuava feroz, com ondas altas e perigosas. Alguns se apavoraram e acabaram se perdendo nas ondas, ficando à mercê de um destino incerto. Os que perceberam que os golfinhos estavam querendo ajudar, foram salvos. Mesmo assim, levou muito tempo para que os golfinhos guiassem os sobreviventes até a praia mais próxima.

Ao nascer do sol, o grupo se viu em uma praia aparentemente deserta. A paisagem era inóspita, árida e isolada, sem sinal de habitação. A fome e o cansaço os enfraqueciam; estavam todos cercados por incertezas sobre quais plantas poderiam ou não ser consumidas e não tinham energia para pescar.

Decidiram enviar mais um pedido de socorro a Edonguera, recorrendo à técnicas ancestrais de Yopá, a meditação musical para a abertura de canais celestes de percepção.

Makulelu, em um gesto solene, conduziu o grupo a se sentar em círculo. Ele examinou o céu noturno para estabelecer as posições das estrelas antes de começarem.

Em um transe profundo, entoou o mantra “Edonguera”, com acompanhamento de Narizito. Aquela música se projetou além de meras notas e palavras, formando uma ponte etérica entre a essência da ilha e o poder do véu com edonguerianos no mundo exterior. Em Edonguera, instrumentos musicais são considerados membros da família e expressões únicas dos que os tocam.

Enquanto o grupo cantava e entrava em transe, do outro lado do oceano, Tassanibari, o filho mais velho de Makulelu, passava uma temporada na praia de Lengália, estudando plantas ancestrais e suas propriedades físicas e manifestações espirituais.

Tassanibari dedilhava seu bandolim Haripex, que era também feito de Linho Alato, assim como Narizito. De repente, o bandolim começou a esquentar e a brilhar em suas mãos. Aquilo parecia um sinal de emergência. Ele sentiu uma urgência e angústia profundas ao fixar aquela conexão. Sentiu que alguém estava em perigo no mundo externo.

Assim, Tassanibari, através do instrumento e seguindo as formas da energia recebidas, visualizou tudo o que acontecia com Makulelu e com os demais náufragos.

Ele viu a praia isolada, seu pai e as outras pessoas em perigo, e compreendeu a mensagem codificada na música, apontando o paradeiro dos náufragos edonguerianos. Viu também o drama do naufrágio da noite anterior e o esforço de Marlim e seus amigos. Em seguida, começou a sentir o canto dos náufragos, liderados por Makulelu e começou a acompanhar, usando Haripex para aprender a harmonia da música.

O ritmo, a harmonia e a ordem particular das notas da melodia continham as coordenadas dos náufragos à partir de Edonguera, funcionando como um radar. Tratavam-se de informações vitais que revelavam a localização exata daquela praia deserta.

Tassanibari traduziu a melodia imediatamente para coordenadas de navegação. Com mãos ágeis, registrou cada nota  em um pergaminho especial feito de folhas de Palma-Gampés de Lengália, conferindo um caráter sagrado ao mapa musical.

Após concluir essa tarefa vital, Tassanibari chamou seus amigos músicos, dispersos pela praia. Juntos, começaram a tocar a melodia, criando uma ponte musical através do firmamento para se conectar com o Capitão Birí. Consciente de que essas notas eram mais do que simples coordenadas, Tassanibari e seus amigos perceberam que eram a chave para desvendar a localização precisa dos náufragos edonguerianos.

A harmoniosa transmissão ecoou pelo firmamento, seguindo na direção do Capitão Birí. Sempre pronto, Birí, grande conhecedor das melodias de resgate, compreendeu a urgência na melodia e entrou em um transe de sintonia, para escutar e entender os detalhes do som. A mensagem de Tassanibari continha a posição exata da praia onde Makulelu e os Edonguerianos estavam encurralados.

Rapidamente, o Capitão Birí mobilizou sua tripulação, decodificou a mensagem musical e começou a delinear a rota. Com as coordenadas em mãos, traçou o curso pelos mares tumultuosos em direção ao destino exato.

Seguiram, a todo vapor, para a praia abandonada. A fusão entre a música transcendental e a cartografia peculiar tornou-se a bússola que os guiava com invejável precisão.

Enquanto a embarcação se aproximava, Makulelu, de pé na praia, avistou no horizonte as luzes tênues da embarcação do Capitão Birí. Sentiu um misto de alívio e esperança enquanto as luzes se tornaram cada vez mais visíveis e sentia, com os ouvidos da alma, as notas musicais da performance de Tassanibari, que se entrelaçavam com a chegada iminente.

A orquestração celestial do Haripex ecoava sobre as águas, enquanto a embarcação cortava as ondas tempestuosas. O som das notas ressoava no coração de Makulelu, indicando que a ajuda estava próxima. A cada batida do coração, a presença da embarcação se tornava mais tangível e, finalmente, em meio às ondas agitadas, o Capitão Birí e sua tripulação emergiram, trazendo consigo a promessa de resgate e segurança para os náufragos.

A chegada não foi apenas física, mas uma ressonância de triunfo sobre as adversidades do oceano. Makulelu, com seus olhos encontrando os do Capitão Birí, expressou gratidão silenciosa por essa sinfonia de resgate que transcendia as fronteiras entre o mundo terreno e o espiritual.

Essa experiência impactante levou à criação desta versão da canção “Edonguera”. Sua história é uma lembrança da conexão profunda que os habitantes de Edonguera têm entre si, com a natureza e com o mundo espiritual.