Conversas Vibrantes: A Arte de Makulelu

As 09:41h, 23 de agosto, 2023
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                                                                                                                                               por Manuriel Dandarga

Quando o firmamento do crepúsculo estava entrando no ciclo de Birilim, fui para Inavô para reencontrar os meus amigos de lá e ouvir relatos e contos. Por sorte, fiquei logo sabendo que Makulelu havia acabado de chegar do mundo exterior. Acabei encontrando com ele e gravando nossa conversa para esse artigo.  

“Makulelu, como bom edongueriano, sua trajetória é um tanto complexa, repleta de aventuras pelo mundo exterior. Suas aventuras se encaixam nos moldes da nossa antiga e respeitada tradição de peregrinos, que remonta aos tempos imemoriais.” 

“Verdade, Manuriel, eu sempre estive muito conectado com as nossas raízes ancestrais. O grau de harmonia que desfrutamos por aqui não existe no mundo exterior. Eu, como tantos outros, também sinto a responsabilidade de tentar ajudar o mundo a melhorar um pouco. Assim, vou compartilhando a nossa cultura, a nossa arte, a nossa filosofia e os valores que as integram.” 

“Pelo que entendi do que andam me dizendo, Makulelu, o seu trabalho musical representa as viagens da vida, com os seus obstáculos e suas vitórias. Esses sentimentos, enfim, encapsulam o que é ser de Edonguera. O contato intercultural é um dos princípios mais antigos da nossa cultura ancestral. Para quem ainda não conhece bem a nossa cultura e o teu trabalho, como funciona isso? Compartilhe um pouco disso conosco.” 

“Claro, Manuriel. Sabemos que Edonguera, nossa história, nossas tradições, nossa língua, nossa filosofia e nossa arte não são apenas nossas; são do mundo. Elas vêm do mundo e vão para o mundo. É como nosso arquipélago, que também chamamos simplesmente de ‘ilha’, situada entre tudo e todos, aberta e fechada ao mesmo tempo, sempre em movimento. Aprendemos o tempo todo. Visitantes talentosos do mundo exterior sempre  passam por aqui. Alguns são famosos lá fora, outros são conhecidos apenas por aqui; anônimos por lá, mas nunca anônimos diante de Deus, nem  aqui, onde celebramos tudo o que há de melhor.”

Makulelu fez uma pausa e continuou:

“Quando nos aventuramos no mundo externo como edonguerianos, não somos reconhecidos pelas pessoas de lá. Esse fato contribui para impulsionar a nossa dedicação ao que muitos por lá chamariam de caridade. Para nós, servir através do exemplo é natural, é o caminho para o bem que nasce dentro de todos. Em nossa querida ilha, tudo o que é importante tem um valor intrínseco para nós. Isso vem da criatividade humana e divina, que estão interligadas. Portanto, aqui, todas as pessoas têm valor. Sabe, eu sinto até uma certa timidez diante da popularidade que meu trabalho alcançou nossa ilha. Por isso, estou sempre colaborando com outros músicos e artistas, viajando quando posso ou quando sinto que é hora de peregrinar.”

“E esse é o espírito da nossa terra, sentir a necessidade de partir, explorar, buscar, celebrar, brincar e criar.”

“Exatamente, Manuriel. Quanto mais viajamos pelo mundo externo, mais aprendemos a apreciar Edonguera e todas as bênçãos que nos tocam desde o nascimento. Essa consciência, oriunda das histórias de nossos peregrinos, cresce em nós e nos impulsiona na busca do novo. Quando nos tornamos adultos de acordo com a nossa cultura, vamos enfrentar o mundo. Assim, descobrimos que existe a miséria e o sofrimento.” 

Makulelu correu seus olhos pelo horizonte, com um suspiro. Seus olhos marejaram enquanto sua mente revia as misérias desnecessárias do mundo exterior. Em breve, continuou: 

“Dessa forma, vivendo a realidade crua, surge dentro de nós, com tremenda força, uma torrente de ideias criativas, expressões do espírito que crescem para acomodar a verdade, sem perder a vontade de seguir o nosso próprio caminho. Os nossos ancestrais diziam que isso vem de uma conexão direta com seres celestiais. Essa torrente nos guia, nos impelindo a refletir. É uma voz que ressoa em nossa alma, nos orientando. Com o tempo, ouvimos isso com tal clareza que conseguimos encontrar soluções para os problemas do mundo exterior.” 

“Veja, Manuriel, é essa conexão com o cosmos que me guia todos os dias. Ao acordar de manhã, saio ao jardim para conversar com os pássaros, respirar o ar de Edonguera e contemplar o nascer do sol. É uma maravilha que acontece todos os dias, uma bênção que valorizamos muito aqui. A nossa ligação com a natureza e com o céu é o nosso ritmo, o nosso relógio natural.”

“Lá eles acordam com o despertador, não é mesmo?” 

 “É uma pena, Manuriel… Por lá, eles vivem embaixo do mesmo céu mas não sabem contemplá-lo em todo o seu poderio elétrico-etérico. É um destino peculiar do qual muitos não podem escapar por causa dos sistemas de controle e exploração. Eu te digo, no meu caso, as idéias vão surgindo aos poucos, dos meus estudos, do ritmo diário, daquilo que eu valorizo. Isso vem da nossa maneira de viver em Edonguera e das ligações com o cosmos que nos rodeia. As idéias e projetos criativos que me movem surgem dessas fontes naturais, e de vivências pelo mundo, de tudo que testemunhei, da miséria à abundância, da tristeza à felicidade. Minha necessidade de me expressar vem dessa experiência.” 

“Continuando, Manuriel, nesse tema do despertador, um objeto que não tem uso aqui, e que reflete tanto os padrões do mundo exterior. Em nossas primeiras viagens descobrimos que Edonguera não existe para as pessoas que crescem e vivem lá. As mitologias antigas descrevem, por exemplo, as águas do rio Lete, o rio do esquecimento. Algo semelhante acontece com Edonguera.” 

“Sim, mas é um pouco diferente também, não é, Makulelu?” 

“Tem um pouco a ver mas é diferente, claro. Por aqui, conhecemos as regularidades de fenômenos que, para as pessoas do mundo externo, pareceriam impossíveis e sobrenaturais. Mas, sabemos bem que são simplesmente uma parte natural da tessitura deste plano. Veja o caso do Véu de Edonguera, por exemplo:  não sabemos o que ele é nem como funciona, mas conhecemos bem os seus efeitos…” 

“E temos receio de definir a natureza, que está sempre em movimento, não é assim, Makulelu?” 

“Sim, evitamos assim as falácias da dita ciência moderna que se perde em categorias rígidas. Para mim, o véu é como uma aura elétrico-etérica que envolve e oculta o nosso arquipélago, nos protegendo de olhares gananciosos. Alguns acreditam que seja como um espelho que confere invisibilidade à ilha. Nós descobrimos há séculos que ninguém pode alcançar estas terras sem estar acompanhado por um nativo de Edonguera.” 

Houve uma breve pausa. Esse ponto revelava uma diferença intrigante entre o mundo exterior e Edonguera que nunca havia sido explicada completamente, mas que para nós é óbvia. 

“Aqui, são fatos incontestáveis e naturais,” apontei, “cujo teor ninguém se atreveria a questionar… Mas por lá…”  

“Claro, podemos sempre ter opiniões diferentes quanto aos conceitos e os detalhes. Por isso as fábulas, estórias e canções podem conter verdades profundas, tanto aqui quanto por lá. O problema é que no mundo externo as pessoas acabam confundindo a verdade com a ficção, Manuriel. É um efeito direto das estruturas de poder e do controle do pensamento. Assim, todos que ouvem falar de nossa ilha imaginam que seja uma mera obra de ficção. Já os que tiveram a sorte de cruzar o véu, retornam ao mundo exterior achando que foi fruto de um sonho fugaz, que aos poucos se perde na névoa da imaginação. Assim, forasteiros, cansados do mundo ficam por aqui. Não querem esquecer tudo e ter que voltar ao dia-a-dia do mundo exterior.” 

“Isso resume bem a situação, sem dúvida, Makulelu. Sabe, eu andei pensando muito sobre as perspectivas do mundo externo enquanto eu ouvia a sua obra. Fiquei curioso para saber mais sobre as suas escolhas para os temas e as letras das músicas. Como podemos falar nisso com as pessoas do mundo externo?” 

“Certo. Vamos pegar um exemplo do meu primeiro disco, a música chamada Parará Kutê. No dialeto de Inavô, significa “foi lá que eu escutei”. Como composição, ela segue uma fórmula mística edongueriana baseada na análise dos triângulos, círculos e quadrados das mandalas sagradas, tanto na terra quanto no céu. Representa o mundo em si… É uma semente, um mapa que reflete as expressões mais coloridas da criação. A música torna isso quase tangível com os seus detalhes sonoros.” 

“Sim, a essência de uma música pode ser nebulosa e até invisível para quem ignora a sua história, seus significados e o seu potencial transcendente.” 

“Exato, e preservar a história do conhecimento harmônico profundo é essencial para nós, Manuriel. Mas essa música, Parará Kutê, tem um significado pessoal também. Apenas aqueles que conhecem a sua origem podem compreender. É uma homenagem às minhas viagens ao Himalaia, onde convivi com sábios que guardam até hoje as crônicas dos peregrinos de Edonguera, que percorreram o Caminho dos Xarilaus. Esse grupo foi um dos primeiros a estabelecer um contato intercultural entre Edonguera e os sábios que vivem, quase anonimamente, nas fronteiras da China com o Nepal e da China com a Mongólia.”

Makulelu fez uma breve pausa e continuou. Eu me concentrei em sua voz para escutar com atenção, sem interromper o fluxo da sua memória. 

“Foram os descendentes dos Xarilaus que trouxeram de lá o Livro das Mudanças, o I-Ching, que hoje faz parte integrante da história da filosofia edongueriana. Como sempre admirei nossos peregrinos e peregrinas, segui a mesma rota da caravana com outros peregrinos e membros da minha banda. Passei um tempo em uma vila próxima à nascente do rio Ganges.”

“Era um vale fértil,” continuou Makulelu, “em um lugar que, em minha mente, brilhava como Edonguera vista de longe. Notei que se eu seguisse a luz que aparecia na minha mente, chegaria lá sozinho. Percorri o Caminho dos Xarilaus sob a lua cheia, seguindo na direção daquela luz.” 

“Quando cheguei à pequena vila, fiquei sabendo que as pessoas esperavam a nossa chegada e haviam preparado uma série de atividades culturais. Foi lá que eu conheci uma das minhas mentoras mais queridas, a Xai Liu Gai Tiani. Ela é uma profunda conhecedora das relações entre Edonguera e as diversas linhas de pensamento que convergiram por ali, bem aos pés do Himalaia.” 

“Xai Liu é descendente de uma peregrina edongueriana chamada Larília Galulu. Ela partiu do porto de Lengália com a caravana original dos Xarilaus, liderada por Garílio Xarilau e seu grupo de videntes e visionários.”

“Fiquei algumas semanas ali, focado em meus estudos. Aprendi sobre as relações entre o I-Ching, a natureza, o cosmos e seus ciclos. Todas as noites, Xai Liu improvisava o que chamava de cantos do firmamento. Era uma aplicação que misturava o Yopá com o I-Ching, sistemas que buscam coletar o poder das águas do firmamento, levando em conta a importância da água da vida do Criador, no desenvolvimento dos seres.” 

“Ela examinava as posições das estrelas e das constelações. De acordo com a configuração cósmica do momento, Xai Liu improvisava. Os ritmos e as linhas que ela cantava fluíam das geometrias das constelações e das frequências etéricas das estrelas. Essa prática, que para Xai Liu é tão natural,  leva décadas para ser assimilada e eu só tive tempo para aprender o básico.” 

“É uma aplicação cosmológica da música, o que me afetou profundamente. A minha imaginação parecia absorver o teor daquelas linhas harmônico-melódicas. Isso formava um elo iluminado com o céu, enchendo o ambiente de energias coloridas. Eu estava lá com o meu grupo musical. Logo que ela cantava, mergulhávamos todos em um transe profundo. Enquanto isso, uma força rítmica incontrolável se espalhava entre nós.” 

“Eu estava tão impressionado que fiquei curioso para ver a expressão dos outros. Arrepiados, trocávamos olhares de satisfação e reconhecimento, sentindo uma chama surgir em nosso âmago. Eu tentava controlar essa chama para não atrapalhar Xai Liu. Ela, que era mais experiente e entendia dessas coisas, se divertia com a nossa surpresa. Conhecia bem o efeito do seu canto e nos testava só para ver como reagiríamos.” 

“Enquanto ela nos conduzia com aquele poder criativo irresistível, nos mostrava o caminho para os segredos mais profundos da nossa ligação pessoal com o cosmos. Quando sentia que estávamos prestes a entrar em ebulição criativa, Xai Liu abria os olhos, girava para nos encarar em um salto que não parecia possível para uma senhora de idade avançada e fazia um gesto repentino, como uma grande maestrina de uma orquestra, nos comandando a cantar, dançar e tocar.”

“Eu lembro que, na primeira vez, quando não esperávamos nada disso, Xai Liu começou a dançar e bater um ritmo no tambor do Claríneo, o percussionista da Lirícia, que estava paralisado, boquiaberto, olhando aquilo como se fosse um milagre. Essa viagem foi muito marcante pra gente.” 

“Assim que voltamos a Edonguera começamos a ensaiar e a compor. Parará Kutê foi o resultado final desse processo. Entoamos também alguns mantras da região de Xai Liu, dedicados às conexões entre a cultura edongueriana e as culturas incorporadas aa Ásia moderna. Vou usar aqui os termos comuns do mundo externo. Como você sabe, a cartografia edongueriana não se encaixa nas convenções fictícias das ciências convencionais.”

Makulelu fez uma pausa para refletir e me encarou. Percebi que esperava minha reação. 

“Sim, Makulelu. Isso me lembrou de umas coisas que eu ouvi de nossos anciãos. Agindo com a preservação do mundo em mente, os sábios não se perturbam nem se afetam com quem perde o rumo por ignorância.” 

“Gosto dessa fala. Tem muito a ver com o espírito da nossa cultura, a autonomia, a abundância, o poder do exemplo como guia, valores que cultivamos há milênios. Você já peregrinou por lá, Manuriel?”  

“Não tive a oportunidade ainda. Me interessei logo cedo pelas caravanas que seguem para a periferia do mundo, que lá chamam de Sul e acabei indo para aqueles lados.”  

“Nem me fale, Manuriel, ou vamos acabar passando a noite inteira compartilhando casos e hoje não tem como.” 

Rimos um pouco, lembrando como é fácil entrar tão fundo num assunto e perder a noção do tempo, ainda mais quando se trata de nossas caravanas. 

“Conheço pouco as tradições orientais, mas gosto muito de ler relatos dos peregrinos que foram para aqueles lados, Makulelu.”

“Eu ainda pretendo voltar pra lá um dia, Manuriel. Seria ideal que todo edongueriano pudesse conhecer ao menos uma parte do Caminho dos Xarilaus. Nosso grupo chegou apenas até a vila de Xai Liu. O que se passou por lá foi tão poderoso que não deu para prosseguir. Para nós, experiências tão intensas assim devem ser digeridas aos poucos e sem pressa. São oportunidades raras de aprendizado. Passamos um verão inteiro naquele lugar — e isso foi apenas o começo. Recebemos instruções sobre diferentes formas de apreciar a natureza.”

“O Caminho dos Xarilaus segue para dentro do Himalaia à partir dali e vai se perdendo com a distância.  Para os peregrinos que desejam se dedicar à história das nossas aventuras pelo mundo, muitas descobertas ainda se espalham por esse caminho. O que sabemos sobre a história com a caravana dos Xarilaus hoje em dia é bem limitado. A vila de Xai Liu pode parecer distante, mas não representa nem metade do Caminho dos Xarilaus. Só poucos Xarilaus originais conseguiram voltar para cá e ninguém foi até o fim do Caminho.”

“As crônicas que estão guardadas com Xai Liu e sua família são únicas e não utilizam nenhum sistema de escrita convencional. A grafia combina a língua ancestral de Edonguera da época dos Xarilaus com dialetos do chinês, do tibetano, do mongol e do sânscrito. Portanto, leva tempo para aprender a entendê-los. Mesmo assim, vale a pena conhecer essas crônicas.”

“Acontece que, quem segue a trilha da caravana dos Xarilaus geralmente não volta. Não se sabe se eles se perdem naquelas trilhas perigosas ou se encontram algum lugar que, como Edonguera, esteja escondido e protegido por um véu de percepção.”

“Pois é, Makulelu! São tantas trilhas e caravanas que não temos como saber tudo. E isso atiça muito a nossa curiosidade.”  

“Sem dúvida! Como a peregrinação é uma base de nossa cultura ancestral, suas raízes são tão antigas, amplas e complexas que não há tempo para tudo. Assim, temos que nos contentar com os limites que isso impõe e traçar o nosso próprio rumo.” 

“Eu gosto dessa amplitude da nossa cosmovisão e história, Makulelu, há sempre algo para aprender.”

“É mesmo muita informação, Manuriel. Levaria horas só para listar o nome das trilhas mais famosas. Alguns sábios me contaram que pessoas que, por experiências no mundo dos sonhos, notam que seu destino é seguir trilhas que vão além dos mapas convencionais e vão sem hesitar.  Dizem que seguem até onde uma nação análoga à nossa se desenvolveu por diferentes caminhos. 

“No entanto, não podemos verificar ainda esses relatos. Também pensamos que os Xarilaus possam ter encontrado uma cultura desconhecida. O caminho é tão longo que, para a maioria dos peregrinos, é apenas de ida. No final das contas, o limite do nosso conhecimento se enfeita com nada mais que especulações.” 

“Aí estamos entrando no campo da literatura, Makulelu, da obra de Talala e tantos outros.” 

“Isso mesmo. Não tem como deixar de fora o poema épico da Kalínia Talala, A Xarilaia, que deve ser lido em seu dialeto original. As questões aí se multiplicam, pois a poesia tem toda uma série de qualidades. Resumindo, A Xarilaia retrata parte da rota dos Xarilaus e suas aventuras. Todo mundo que aprende a ler aqui conhece esse poema… Bom, depois do que aconteceu, não tínhamos condições de prosseguir. Aprendemos tanto que só queríamos voltar para casa e continuar o processo criativo aqui, perto do nosso povo. E com um bom suco de juritiá azedo por perto e o estúdio para gravar tudo, foi o que aconteceu.”

“Excelente, Makulelu. Obrigado pelo seu tempo e pela atenção dispensada. Estou louco pra ver o que mais você vai criar.” 

Ouça Parará-Kutê: