por Jalima Borges
Como biógrafa de Makulelu e participante das tradições de Edonguera, tenho o privilégio de compartilhar histórias que capturam a essência de nossa ilha, seu povo e sua arte. Makulelu, o compositor edongueriano, é, também, como muitos de nós, um contador de histórias e casos. Neste relato, quero transportá-los a um momento especial em que a magia de Edonguera cruzou com a influência da poesia brasileira.
Em 1970, Vinicius, um renomado poeta e músico brasileiro, estava tocando na Itália. Ele decidiu tirar uma semana de folga nas proximidades da costa de Sorrento, onde aproveitava seu tempo com um copo de uísque e versos poéticos. Por coincidência, um peregrino de Edonguera chamado Tarken Farissi havia ancorado na região uma semana antes e ficou sabendo que o poeta estava por lá.
Tarken, especialista em poesia romântica britânica e viajante das rotas de peregrinação de Edonguera, saiu pela pequena cidade, investigando os bares mais boêmios, onde o poeta poderia estar. Sem muito esforço, logo o reconheceu: estava sentado num bar, embaixo de um grande parasol, de óculos escuros, tomando um daiquiri, petiscando iguarias locais e escrevendo versos em guardanapos. Vestia uma camisa branca de mangas curtas com um velho calção de banho e sandálias de couro e observava o movimento da pequena cidade.
Tarken se apresentou, usando o inglês fluente. Uma amizade brotou rapidamente eis que Tarken era um estudioso das raízes literárias e musicais do Brasil, assunto que encantou Vinicius. No entanto, este ficou curioso com a cultura de Tarken e suas origens. Tarken falou abertamente, pensando que o poeta fosse levar algumas coisas na brincadeira, dispensando aquilo como ficção.
“Tarken, meu caro, suas palavras tem o sabor da nossa música, da nossa poesia. Me conte mais sobre sua história, sobre esse lugar chamado Edonguera”, falou Vinicius, com uma expressão que refletia um misto de curiosidade e respeito.
Surpreso pela receptividade do poeta à ideia de Edonguera, Tarken decidiu compartilhar mais sobre as origens desse lugar misterioso. Ele mergulhou em relatos sobre os rituais musicais, as árvores de Linho Alato que produziam instrumentos únicos e as lendas que entrelaçam a realidade e a mitologia.
Vinicius, encantado, não via aquilo como mera ficção, mas como um exercício literário envolvente. Ele sorriu, imaginando as melodias celestiais e os encantos escondidos nas florestas de Edonguera.
“Tarken, meu amigo, mesmo que seja um devaneio, é uma narrativa que ressoa com a alma. Talvez eu tenha uma conexão mais profunda com esse lugar do que imagino.”
Curioso, Tarken notou que Vinicius parecia entender, ou ao menos aceitar, como exercício artístico-literário que um lugar como Edonguera existisse. Tarken ficou intrigado: seria aquilo um efeito da bebida ou algo mais profundo? Será que o poeta poderia descender de edonguerianos ou ter tido contato com artefatos ou até instrumentos de Linho Alato ou outras madeiras nativas, mesmo sem saber?
Tarken decidiu testá-lo, compartilhando ainda mais detalhes sobre Edonguera. “Meu caro, tenho histórias que vão além dos limites do entendimento comum…”
Vinicius sorriu, deu um gole no seu daiquiri e fez um sinal para o garçom trazer mais um.
O poeta começou a falar sobre as aventuras de Voltaire em “Cândido” e de sua busca pelo El Dorado, como se estivesse duvidando da história de Edonguera.
Obra de Gref Markênis, “Cândido em El Dorado” (1889).
Ah, Tarken, meu irmão, você até me lembra Cândido, aquele pobre tolo de Voltaire. Buscava incessantemente por El Dorado, uma terra utópica, apenas para perceber, no final, que a verdadeira felicidade estava em cultivar seu próprio jardim. Edonguera parece seguir a mesma linha, não acha? Uma ilha misteriosa com suas próprias maravilhas, mas, no fim, será que não é só um conto de fadas, uma busca sem sentido?”
Tarken não caiu no truque e disse: “Edonguera é um lugar onde as próprias árvores produzem instrumentos mágicos.”
“Instrumentos mágicos? Você terá que se esforçar mais, Tarken. Repito: isso soa como um conto de fadas.”
Tarken, sorrindo, afirmou: “Não. Não é um conto de fadas. Muitas coisas maravilhosas foram feitas por causa dos nossos instrumentos de Linho Alato. Existem várias discussões que tentam explicar o por quê e como disso tudo.”
Vinicius ficava cada vez mais curioso. Achava estranho que Tarken, com solene seriedade, falasse tão naturalmente desse lugar com costumes tão intrigantes e cujo nome, Edonguera, jamais havia ouvido. Por isso, arrematou:
“Falar é fácil. Prove. Como posso acreditar que exista um lugar com tais costumes e que que eu nunca ouvi falar em todas as minhas aventuras?”
Tarken, querendo provar a verdade do que dizia, desafiou: “Que tal navegarmos juntos até lá? Meu barco está ancorado aqui em Sorrento e a viagem leva uns dois dias…”
O poeta permanecia cético, mas achava Tarken muito sincero. Talvez fosse um pouco louco, mas não era perigoso. Talvez essa tal ilha de Edonguera fosse só alguma vila hippie em alguma ilha Italiana, onde viviam imaginando coisas.
Enquanto Vinicius pensava, Tarken arrematou: “Lá você poderá conhecer os músicos e poetas locais, todos cientes dos desenvolvimentos literários e musicais existentes.”
A ousadia de Tarken deixou o poeta intrigado e ele aceitou o desafio. As crônicas de sua estadia estão registradas nas bibliotecas das ilhas, inclusive as composições inéditas que acabaram ficando em Edonguera e que surgiram de diversas colaborações.
A jornada até Edonguera foi emocionante, principalmente a entrada na névoa que envolve o véu. Vinicius ficou totalmente maravilhado. Assim como Cândido em El Dorado, o poeta imaginou que poderia trazer para o mundo o conhecimento de Edonguera, utilizando sua memória de poeta. Estava tão entusiasmado que nem pensou que o poder do véu, após sua saída, transformaria suas experiências em memórias de sonhos.
A chegada à Edonguera foi recebida com festa, muita música e longas noites na praia. Foram criadas novas composições musicais. Houve uma semana de maratona espontânea de músicas e poemas de Vinicius como homenagem à sua visita inesperada, com arranjos edonguerianos.
O poeta ficou fascinado com a vida em Edonguera, onde a liberdade pessoal e a autonomia eram valores inegociáveis. Ele reconheceu que, apesar das dificuldades enfrentadas no Brasil sob a ditadura militar e a censura, “é melhor ser alegre do que ser triste”. Ele entendeu que a tristeza era apenas mais um aspecto da vida no mundo. Vinícius ia acabar ficando em Edonguera, mas o peso de seus compromissos no mundo era muito forte. E ele ficou dividido.
Uma noite, acordou, sentindo um brilho no céu que jamais tinha percebido no mundo exterior. Ficou contemplando as estrelas e lembrando do passado. Escreveu em uma folha de papel, que deixou em Edonguera, os seguintes versos, sem título:
“Os papagaios, mensageiros da canção,
Conversam em versos, no ritmo da paixão,
Dolphinês ecoa, ligação pelo firmamento,
Em Edonguera, um divino encantamento.
No governo da alma, sem dogmas a se curvar,
O maná é partilhado a todos para saciar,
Mas a realidade bate à porta, como a luz do sol de verão,
Em seu esplendor, é lenitivo, não um sonho em vão.
O poeta se despede, embala o coração,
Anuncia a boa nova, em cada verso, uma canção,
No dilema que se revela, a métrica se desfaz,
Terra perfeita, sonho real, na realidade que apraz.
No compasso do mar, onde a saudade reverbera,
Cantos de Marigadê, ecos a me envolver,
‘Nossos momentos, nossos tormentos’ ecoam na brisa,
Mas na vida, meu destino preciso reconhecer.”
Naquela época, Makulelu era ainda jovem. Estava desenvolvendo sua musicalidade com muito entusiasmo. Participou de todas as palestras de Vinicius sobre poesia romântica inglesa e música brasileira. Eles passaram várias noites trocando ideias musicais e tocando com os amigos.
Quando o poeta partiu, deixou Edonguera com o coração cheio de saudades. Makulelu ficou muito intrigado com ele, que contava tantos casos que revelavam sua experiência e insight. O termo “comusuberum” acabou ficando gravado em sua memória. Com o passar dos anos, meditou muito naquele ponto. Algumas composições de Vinicius, depois que voltou ao mundo externo, possuíam pequenos sinais de que a memória de Edonguera parecia mais forte que um mero sonho fácil de esquecer.
Makulelu, sempre que ouvia algo do poeta, lembrava dele com alegria e nostalgia e também de suas palestras, das longas noites ao ar livre, trocando casos e cantando. Se todos fossem iguais ao Vinicius, Edonguera não precisaria mais do véu e seus encantos se espalhariam pelo mundo inteiro.
Alguns acreditam que o poeta manteve a experiência em segredo, enquanto outros pensam que ela se dissipou na neblina do véu, causando sua rápida obliteração. Talvez tenha, final, sobrevivido apenas como um sonho, inspirando-o em sua jornada para a imortalidade.