Ecos do Mar: “Hêra” e os Golfinhos de Edonguera

As 11:11h, 7 de novembro, 2023
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                                                                                                                                                             por Jalima Borges

Os pescadores que moram em Lengália e os visitantes que lá estavam me contaram, pela primeira vez, versões mais detalhadas da história da canção “Hêra”. Muitos vêm à Lengália para se envolver em uma grande variedade de atividades, incluindo cultivo, coleta, construção de casas, culinária, música, canto, comunicação com diversos animais e jogos esportivos. A história dessa canção é conhecida como parte da tradição oral da região. Tive o privilégio de compilar esta versão a partir de diversos contatos, criando assim um retrato vívido das origens da música e da rica herança cultural de Edonguera.

Foi em um lugar paradisíaco de Edonguera, a praia de Lengália, que nasceu uma das composições mais emblemáticas de Makulelu: “Hêra”. Nos fins de semana, o artista e sua parceira, Inassim, costumavam buscar refúgio nas areias douradas de Lengália, onde coqueiros generosos espalhavam sombras refrescantes.

Os dias nessa praia eram dedicados a conversas profundas, encontros com amigos e, é claro, ao desfrute dos petiscos edonguerianos, principalmente à base de siri, de vieira, e do jatubaí lengális, que só cresce naquela praia e, também, do famoso suco de abidálida, iguaria nutritiva sem igual, acompanhados da água de coco mais fresca que se pode imaginar, diretamente da fruta. Enquanto apreciavam essas iguarias, Makulelu e Inassim absorviam a energia viva do mar e a brisa constante, uma forte presença nas praias de Edonguera.

Foi nesse ambiente de conexão com a natureza e o amor compartilhado que a melodia de “Hêra” começou a tomar forma. O nome da canção, “Hêra,” em si, tem um significado especial. Ele representa algo profundamente valorizado em Edonguera: a liberdade. Afinal, a ilha é protegida pelo Véu de Edonguera e somente com a companhia de nativos locais é que estrangeiros podem conhecê-la.

No entanto, a liberdade em “Hêra” não se refere apenas a uma condição geográfica. Essa canção é uma celebração do amor e da natureza, duas forças indissociáveis em Edonguera. A palavra “Konini” ressoa na melodia e é repetida de maneira cativante, refletindo as correntes da ilha e as batidas do coração. O termo “Konini” é mais do que uma palavra; ele simboliza o amor, que é a força que une cada habitante da ilha com a própria ilha. É o coração que evoca o amor em todos os seus aspectos, desde a conexão entre as pessoas até o amor pela natureza e por Edonguera. Este amor abrange todos os seres que fazem parte da criação, incluindo a capacidade de comunicação e a busca de ajuda com os avatares espirituais de todos os animais e plantas, fortalecendo ainda mais a ligação entre os habitantes da ilha e o mundo natural que os cerca.

Caminhar e correr na praia de Lengália, com a brisa perfumada e a maresia envolvendo o corpo, é uma experiência transcendental. Fazer isso com o coração cheio de amor e harmonia é ainda mais especial. Essa é a essência de “Hêra,” uma canção que captura a liberdade, o amor e a conexão profunda com a ilha de Edonguera.

Pintura de Jauricia Quelim, “Cantando no Mar” (1873).

Mas a história de “Hêra” vai além da música. Certa tarde, enquanto Makulelu se sentava na praia com seu fiel violão Narizito, algo mágico aconteceu. Quando ele começou a entoar os primeiros versos da canção, uma onda especial emergiu do oceano, tocando suavemente seus pés e trazendo consigo as algas chamadas Hêra.

Em Edonguera, Hêra tem um significado sagrado e profundo, pois ela está intrinsecamente ligada à comunicação entre os seres humanos e os golfinhos. Esta conexão tem raízes que remontam a milênios, desde os tempos dos peregrinos que viajaram para além das Ilhas do Pacífico e trouxeram o conhecimento da comunicação animal. Os golfinhos são seres especiais, com uma conexão profunda com os deuses do oceano e do céu. Eles têm a capacidade de atravessar o Véu de Edonguera devido à sua ligação única com as forças divinas que governam as águas e o ar.

Neste dia, os golfinhos estavam enviando uma mensagem a Makulelu. Enquanto ele começava a tocar a melodia de “Hêra,” outros músicos se uniram a ele, ajudando a escrever os acordes e a melodia da canção que estava nascendo. Enquanto isso, na água, Inassim nadava com seu filho Tassanibari. Makulelu tinha o seu inseparável instrumento, Narizito, consigo. Sentado na areia, ele pegou Narizito e começou a tocar a introdução da música, como era natural para ele. E como eu disse, nesse momento, uma onda mais forte do mar tocou seus pés, trazendo consigo a alga marinha chamada Hêra.

Na praia, à medida que a música de “Hêra” fluía da ponta dos dedos de Makulelu, os golfinhos reconheceram a energia peculiar de Makulelu e Narizito, e emergiram graciosamente das águas, acompanhando a melodia. Cumprimentaram Inassim e Tassanibari com saltos elegantes, trazendo consigo plantas, pedaços de madeira e até bolas. Esses objetos eram apetrechos de brincadeira que os golfinhos adoravam usar quando surgiam, o que geralmente acontecia ao pôr do sol, quando as pessoas de Lengália começavam a fazer música à beira-mar.

Essa experiência única selou a ligação especial entre a canção “Hêra” e a presença dos golfinhos. A melodia não era apenas uma homenagem à liberdade e ao amor, mas também uma expressão da conexão íntima entre os habitantes de Edonguera e a natureza que os cerca.

Esta é apenas uma das muitas histórias fascinantes por trás das composições de Makulelu, cada uma delas transportando um fragmento da alma de Edonguera e contando histórias de amor, de liberdade e de harmonia com a natureza.