por Jalima Borges
Era a década de 1980 e Makulelu encontrou-se perdido nas ruas agitadas de São Paulo, no Brasil, onde estava recebendo peregrinos e planejando rotas e projetos de ajuda social. Um dia, saiu andando sem direção definida. Foi parar no bairro da Moóca, onde a vida urbana fluía como uma sinfonia de sons estranhos e palavras desconhecidas.
Caminhando pelas vielas, ele notou como as pessoas pareciam apressadas e desconectadas de tudo ao seu redor. Os prédios altos bloqueavam o sol e o tráfego incessante enchia o ar com um zumbido constante.
No meio do tumulto da cidade, Makulelu sentiu uma sensação de desconexão que nunca havia experimentado na ilha encantada de Edonguera. Ele estava fora de seu elemento, tentando entender os sons e os movimentos daquele lugar. Em meio a toda a agitação mecânica, à poluição sonora e ambiental que pareciam estar por toda parte, ele notou algo surpreendente e poético: a presença de uma miríade de pássaros que, apesar de todas as adversidades, ainda encontravam um lar na cidade. Árvores antigas se espalhavam por entre os edifícios, oferecendo refúgio a essas criaturas aladas. Era como se a própria natureza buscasse manter viva a conexão com suas raízes, mesmo no coração da metrópole.
Sua curiosidade o levou a explorar mais profundamente a Moóca. Ele visitou mercados movimentados, onde as pessoas gritavam, vendendo frutas e legumes coloridos, mas também notou as muitas pessoas sem-teto que perambulavam pelas ruas, uma visão que o encheu de tristeza. Makulelu sabia que, em Edonguera a miséria era desconhecida, mas compreendia o desafio que o mundo externo enfrentava para lidar com essa realidade. Ele passeou pelas praças, onde crianças brincavam e riam, alheias ao mundo movimentado dos adultos, e seu coração se aqueceu ao ver a alegria naquelas faces inocentes, mesmo diante das dificuldades que a cidade enfrentava.
Foi quando ele entrou em uma parte do bairro que parecia mais antiga, onde as ruas se estreitavam e as casas eram adornadas com detalhes arquitetônicos. Makulelu percebeu que as coisas estavam ficando um pouco mais incertas à medida que ele se aventurava por essa área menos desenvolvida. Ele sentiu que estava mais perto de descobrir a verdadeira essência da cidade, algo que transcendia o caos moderno.
No entanto, ao virar uma esquina, ele se deparou com uma situação perigosa. Um grupo de jovens estava agindo de maneira ameaçadora, utilizando gírias que ele não entendia e demonstrando hostilidade. Makulelu sentiu uma onda de tensão no ar e sabia que precisava encontrar uma maneira de se comunicar com eles e se libertar dessa situação. Ele confiou na força de sua conexão com o cosmos, aproveitando a sabedoria do Yopá para transformar a hostilidade desses jovens em aliança.
Eram quatro rapazes e duas moças que se aproximavam dele. Eles traziam facas escondidas nas mangas e nos bolsos, chegando cada vez mais perto. Seus sapatos, gastos e surrados, pareciam testemunhar muitas caminhadas pelas ruas da cidade.
As camisetas que usavam estavam desbotadas e manchadas, refletindo uma vida árdua e difícil. No entanto, o que mais chamou a atenção de Makulelu foi a expressão de desconfiança e determinação em seus rostos. As duas mulheres permaneceram afastadas, observando com olhares intensos enquanto os outros se aproximavam dele.
Foi então que ele percebeu algo incrível. Acima deles, um bando de papagaios coloridos sobrevoava o céu em um balé de cores e asas. Makulelu ergueu as mãos com gestos precisos e começou a se comunicar com os papagaios, usando a língua das aves. Suas palavras fluíam como melodias, imitando as aves. Os papagaios, reconhecendo o dialeto edongueriano, desceram dos céus em espirais graciosas, circulando Makulelu e os desconhecidos.
As aves desceram em círculos graciosos, desviando a atenção dos jovens hostis e enchendo o ar com seus cantos melódicos e vozes animadas. Makulelu conduziu as aves em uma coreografia espetacular, como um maestro dirigindo uma orquestra.
Os papagaios dançavam pelo ar em movimentos graciosos, suas cores reluzindo como joias. Enquanto dançavam e cantavam em uníssono, um sentimento de admiração e confusão preenchia os rostos dos jovens, enquanto eles observavam, paralisados pela beleza e pelo encanto do momento. Os papagaios não hesitaram, pousando em seus braços, ombros e até mesmo em sua cabeça. Estenderam suas asas vibrantes e começaram a cantar em uma harmonia mágica e encantadora, formando um círculo ao redor dos jovens ameaçadores.
Os rapazes e as moças que o haviam cercado ficaram espantados com a cena. Os papagaios, com sua diversidade de cores e movimentos, pareciam mais um espetáculo que uma ameaça. E Makulelu, com seu canto peculiar, transformou o medo em curiosidade. Uma mulher do grupo sorriu para Makulelu, e ele percebeu que havia encontrado uma brecha. Com a ajuda das aves e suas habilidades únicas, ele conseguiu criar uma ponte de compreensão.
Makulelu entoou o mantra Namakalilê em voz alta e os papagaios o acompanharam, criando uma sinfonia celestial que ressoou por todo o bairro. A música era tão envolvente que, aos poucos, a hostilidade nos olhos dos jovens se transformou em surpresa e, finalmente, em aceitação.
Os jovens, criados nas ruas em circunstâncias árduas, enfrentando um mundo caótico que não lhes dava escolha ou chance, sentiram algo extraordinário naquele momento. Makulelu percebeu a falta de oportunidades que eles haviam tido e o estigma que a sociedade lhes impusera. No entanto, ele também viu o potencial latente que residia em cada um deles.
A magia daquele instante, a beleza, a surpresa e a verdade da conexão entre os humanos, os papagaios e a música, tudo isso transcendeu os desafios diários que esses jovens enfrentavam. Lágrimas corriam dos olhos de cada um deles.
Para cada jovem, um papagaio foi designado para servir como guia, parte de uma missão para auxiliar aqueles em necessidade e que haviam perdido seu caminho. Essa missão estava profundamente enraizada no propósito da tradição peregrina. Era também como se os jovens e os papagaios estivessem destinados a se cruzarem, em uma conexão que remontava possivelmente a milhares de anos, com os papagaios atuando como faróis para iluminar o caminho daqueles que precisavam de orientação.
Naquela primeira ocasião, Makulelu explicou como havia se perdido nas ruas da Moóca. Eles o orientaram de volta ao seu caminho, afastando-se das ruas perigosas e o levando a uma praça segura. Makulelu agradeceu calorosamente e partiu com um novo entendimento da cidade, sentindo-se grato pela magia dos papagaios que o havia ajudado naquele momento de perigo.
Nas semanas seguintes, sob a orientação de Makulelu, eles aprenderam a compreender e se comunicar com os papagaios de maneira profunda. Com a ajuda de Makulelu e dos papagaios, criaram laços com peregrinos de Edonguera que viviam perto da cidade de Santos e foram conduzidos a terras onde podiam cultivar e trabalhar em harmonia com os papagaios e outras aves. O que começara como um encontro em circunstâncias desfavoráveis floresceu em um exemplo de como viver em paz e equilíbrio, realizando um trabalho significativo, mesmo sob as condições adversas que os cercavam.
Suas histórias inspiradoras trouxeram esperança àqueles que tiveram o privilégio de conhecê-los pessoalmente, pois optaram por se afastar do mundo das mídias sociais e da informação em massa, buscando conexão com a natureza e o cosmos. Eles se tornaram uma fonte de inspiração local para todos que cruzaram seus caminhos.
A conexão entre Makulelu, os papagaios e aqueles jovens que já foram ameaçadores era agora uma bela dança de harmonia, mostrando que, mesmo nas situações mais difíceis, a comunicação e a compreensão podiam superar o medo e a desconfiança. Eles se uniram para criar algo extraordinário, uma prova de que a magia da vida pode florescer nos lugares mais improváveis.
Assim, essa experiência na Moóca, em São Paulo, cercada por aves coloridas e pessoas desconhecidas, inspirou a melodia de “Namakalilê.” Ela capturou não apenas a essência da ilha de Edonguera, mas também a lição de que a comunicação e a compreensão podem superar o medo e a desconfiança, mesmo nos lugares mais improváveis.
Essa história foi compartilhada comigo por um dos experientes contadores de histórias que conheci durante o Mês das Histórias de Papagaios (Parrot History Month), um evento fascinante que ocorre anualmente na ilha de Edonguera. O encontro reúne os comunicadores de papagaios da ilha e, durante esses dias, a atmosfera é permeada com uma sensação mágica e cheia de aventuras.
Eu tinha chegado à pitoresca Tararíbe Bay, no sudoeste de Inavô, durante o festival. A praia estava repleta de cores vibrantes e risadas, já que muitos parrot communicators trouxeram seus leais amigos emplumados para participar de várias atividades comunitárias. Um dos eventos mais emocionantes era a famosa Treasure Race.
Nessa competição, papagaios e seus donos seguiam pistas e enigmas que os levavam a uma jornada pela densa selva da ilha. O objetivo final era encontrar um tesouro escondido, que quase sempre era um instrumento musical feito à mão. Esses instrumentos tinham uma história especial e eram imbuídos de magia que ecoava por toda Edonguera.
Durante o dia, os competidores exploravam a selva, confiando nas habilidades intuitivas de seus amigos papagaios para os guiar até o tesouro. À noite, os relatos mágico fluiam. Muitos participantes compartilhavam sonhos vívidos em que o Parrot Avatar, um ser misterioso que habitava a dimensão espiritual das aves, transmitia mensagens e informações do mundo externo.
No entanto, em certa noite, a história que ressoou em mim foi a da aventura de Makulelu nas ruas da Moóca, em São Paulo, durante a década de 1980. Essa história destacou a incrível capacidade de comunicação que os papagaios proporcionam e como as conexões inesperadas podem florescer mesmo nos lugares mais improváveis.
Sentados em círculo, cercados por nossos amigos de penas e as luzes suaves do acampamento à beira do mar, fiquei maravilhada com a narrativa dos acontecimentos e sua mensagem de união e compreensão. Essa experiência reforçou o fato de que, em Edonguera, a comunicação transcende barreiras e permite a compreensão, independentemente de onde esteja ou com quem se conecte.
Através das lições compartilhadas por Makulelu e da magia dos papagaios, percebi que a verdadeira essência da comunicação é a capacidade de nos conectarmos uns com os outros, superando fronteiras, idiomas e diferenças culturais. Esses momentos mágicos ao redor da fogueira, com nossos amigos alados como testemunhas silenciosas, revelaram a universalidade da compaixão e da harmonia que permeiam as histórias de Edonguera.
A ilha e seus habitantes nos ensinam que, independente de onde estejamos e de quem somos, a essência da humanidade está na capacidade de se comunicar, compreender e, acima de tudo, compartilhar amor e união uns com os outros. Essas lições valiosas de Makulelu e dos papagaios ressoam em nossos corações, mostrando que a verdadeira magia da vida está na conexão que criamos com o mundo e com as almas que encontramos ao longo do caminho.